O gênio e o Nada
A delicadeza da existência nesse mundo está nos encontros com a surrealidade. Estes encontros pontuais raramente são relatados, a não ser por aqueles que têm a irresistível compulsão que leva a transformar lembranças em palavras.
O que aconteceu comigo, e que posso contar a você leitor, foi meu encontro com um provedor de desejos. Como um gênio da lâmpada, mas sem a lâmpada. Eu na verdade o encontrei em um bar num dia de bebedeira solitária. Eu sempre gostei de fazer as coisas sozinho, inclusive conversar, e minhas incursões subjetivas me levaram a ter o hábito de não conversar muito com outras pessoas. Quando me encontro em grupo geralmente me calo, intimado pela minha mente a tratar questões filosóficas sobre a vida, o mundo e tudo mais.
Mas enfim, certo dia desses no bar estava tentando resolver como ia descobrir quantas cervejas havia tomado e quantas o dono do bar ia cobrar a mais, quando um rapaz ao meu lado me cutucou. Eu, como não gosto de ser cutucado, me virei imediatamente indignado. A estranheza que senti deve ter sido clara em meu rosto, porque quando o encarei ele deu um meio sorriso de satisfação. Minha primeira impressão foi de que aquele homem era ligeiramente transparente. Isso ou o dono do bar estava certo em me cobrar mais do que eu pensava ter bebido. E também usava um chapéu marrom com uma fita mais escura e um sobretudo, como aquelas pessoas mal disfarçadas que vemos em filmes. E então ele falou.
- Como vai?
- Err... bem, eu acho - respondi meio abobalhado.
- É, ótimo, ótimo.
- Ahmm, ok.
Ia voltar à minha bebida, quando ele recomeçou, para o meu pesar.
- Olha, eu não gosto muito de rodeios, eu não gosto de ficar muito por aqui e quero voltar o mais rápido para casa. Acho que você é o cara certo, então vamos lá. Peça!
Eu demorei um pouco para digerir o que aquela figura tinha acabado de falar. Podia praticamente ouvir as engrenagens em meu cérebro parando aos poucos, com aquele barulho chato de ferrugem.
- Peça o quê?
- Ah, desculpe acho que não me apresentei. Eu não tenho um nome que possa ser dito na sua língua, mas sou uma espécie de entidade que passa pelo seu plano de vez em quando para realizar desejos. Eu não sei porque isso acontece na verdade, nem adianta me perguntar, mas é inevitável. Enquanto eu não realizar um desejo por aqui, eu não posso voltar para casa. Mas tem que ser a pessoa certa entende? E eu vi que essa pessoa era você logo que eu entrei aqui. Esperei até você estar alcoolizado o suficiente para não me chamar de maluco, mas isso não vem ao caso.
Ou eu tinha bebido muito mais do que imaginava, ou estava sonhando. Foi difícil acreditar em tanta baboseira. Porém a primeira coisa que me veio à cabeça falar foi:
- Você realmente gosta de falar, não é?
O sorriso desapareceu do rosto do homem. Agora ele fazia uma cara de aborrecimento, coma boca curvada para baixo, como alguém que não consegue fazer uma criança aprender uma lição extremamente importante.
- Olha aqui, - ele recomeçou em uma voz mais séria e falando pausadamente - Eu posso realizar desejos, certo? O que você quiser, desde que não seja ressuscitar alguém. Peça e eu provo. Que tal dinheiro? É o mais comum.
Eu realmente cogitei sobre o assunto. Dinheiro nunca é demais. Mas eu não ganho assim tão mal, tenho um bom emprego e não me falta nada. O que eu faria com muito dinheiro? E tem aquela voz dentro de mim, aquela inconveniente convicção de rejeitar tudo o que é senso comum. Qualquer um pediria dinheiro.
-Não, não quero dinheiro, obrigado.
Ele pareceu perplexo perante minha negação de ter, sem qualquer esforço e limite, o bem mais desejado do homem.
- Tem certeza? - o homem meio transparente insistiu.
- Tenho, tenho certeza sim.
Ele deu de ombros e se virou, me enchendo de alívio, ia acabar aquela loucura toda e eu poderia ir pra casa mergulhar num pesado sono de roncos sonoros que só a cerveja pode me proporcionar. Mas para meu desalento, ele voltou a falar.
- Certo, você é estranho - "Eu sou estranho?" pensei - mas que tal um grande amor? A mulher, ou homem, sei lá né, que você quiser, que você sempre sonhou. Que tal? Você parece um cara solitário.
Eu realmente sou um cara solitário, como já disse, mas isso não quer dizer absolutamente que eu queira mudar esse estado. E a insinuação de que eu pudesse ser gay foi arquivada, mas não processada pelo meu entorpecido cérebro, portanto nem me importei com aquilo.
- É... acho que não - foi tudo o que eu consegui responder.
Eu aprendi cedo que o amor a longo prazo não traz nada mais que problemas. E eu sou um homem de longos prazos, nada de viver o momento e deixar a vida me levar.
O homem agora estava visivelmente aborrecido, um estado de espírito que eu não sabia se era bom ou ruim para mim. Ele podia simplesmente se encher e sair ou poderia revoltar-se e tentar fazer algo contra mim. Mas ele voltou a me oferecer coisas: carros, um paraíso só para mim, mulheres, fama, chocolates infinitos, inteligência, compreensão da realidade e o sentido da vida. Mas eu estava decidido a veementemente me negar a tudo isso, independente se acreditava que ele podia realizar tais desejos ou não. Ele chegou ao seu limite, enfurecido.
- Eu não vou sair daqui sem realizar um desejo seu, - falava quase gritando e babando uma saliva levemente azul. - e vou dar um jeito de fazê-lo, mesmo que seja contra sua vontade! Portanto vou perguntar pela ultima vez! O que você deseja?
-Nada.
Ele ameaçou levantar-se mas deteu-se de súbito, com uma linha fina de sorriso satisfeito no rosto. Voltou a sentar-se lentamente, me olhando fixamente nos olhos. Agora eu estava assustado.
-Ok. Desejo realizado. Parabéns pelo NADA.
Eu fechei os olhos, sentindo uma onda de eletricidade percorrer meu corpo, inchando meu cérebro, deixando minhas extremidades formigantes e dormentes. Quando aquele estranho arrepio passou, eu abri os olhos e o homem havia sumido. E minha bebedeira também. E tinha certeza que quando acordasse no dia posterior não haveria nem sinal de ressaca. Aliás, não saberia nem se dormiria. Os pensamentos foram se esvaindo da minha cabeça, quase podia senti-los vazar pelo meu ouvido. Eu nunca me senti tão leve em toda a minha vida. Paguei a conta no bar, andei até meu carro e fui para casa. Fiz tudo isso como quem respira, um ato mecânico, sem qualquer tipo de reflexão. Depois me lembro do momento no escuro, deitado no chão da sala, sobre o tapete sem graça que não a decora. Eu estava inteiro, mas de certo modo vazio. Pensava, mas não me importava exatamente com o que estava pensando. Tudo era desimportante. Eu havia ganhado o Nada.