E se tivesse uma segunda chance?
Como boa vítima dos produtos culturais baratos, da mídia de massa, e do entretenimento (quase) vazio, me permito confessar dilemas pessoais estimulados por filmes descartáveis.
Admito assim a pequena convulsão existencial que o filme Destino em Dose Dupla (1990) me causou.
Nele, Larry, o protagonista, um típico cidadão médio desse mundo capitalista, considera sua vida como uma grande frustração, e tudo porque, quando mais novo, errou a bola decisiva da final do campeonato de baseball.
É quando aparece uma entidade misteriosa, que poderíamos chamar de Senhor Destino, e que concede ao protagonista a chance de viver a vida que ele teria tido se, e somente se, tivesse acertado aquela bola - o que inclui os 'ãos' da filosofia consumista: carrão, empregão, mulherão, mansão.
Comédia e lições de moral à parte, a grande pira do filme é nos fazer pensar em como nossa linha da vida pode tomar um rumo totalmente diferente a partir de um único e simples acontecimento.
Essa pira, porém, não exatamente exclusiva de minha mente corroída pelos filmes dos anos 90.
E a prova maior da não exclusividade é a quantidade desses enredos que podemos chamar de enredos e se; a começar com a história clássica de Dickens, de 1843, Um Conto de Natal (que se você teve infância você assistiu a versão com o Tio Patinhas), seguindo com A Felicidade Não se Compra (1946), Corra, Lola, Corra (1998), Um Homem de Família (2000), De Repente 30 (2004), Questão de Tempo (2013) e tantos outros mais ou menos originais, sempre girando em torno da pergunta do protagonista: e se eu tivesse feito isso ao invés daquilo?
E como nada nessa vida é coincidência - ainda mais em termos dessa louca e amarrada sociedade em que vivemos -, cabe perguntar: por que tantos enredos e se, por que tanto sucesso, e por que esses tipo de enredo pode fazer alguém viajar por horas se perguntando pelos e se's de sua vida?
Todos conseguem divisar um e se na sua vida, aquele momento que, fosse grandioso ou não, parece ter tido o poder de mudar muito do que aconteceu depois.
E se tivesse estudado mais e zoado menos?
E se tivesse feito o curso X ao invés de Y?
E se tivesse ficado ao invés de se mudado?
E se tivesse declarado ao invés de calado?
Ou mesmo e se tivesse ido naquela reunião dos antigos colegas de escola ao invés de ficar em casa assistindo pela quinquagésima vez um episódio de Friends?
O nosso drama com o e se, e portanto a facilidade com que nos deixamos levar pelos enredos do tipo, é que ele toca numa das ansiedades típicas de nosso tempo - e que começou há muito tempo, quando as pessoas passaram a acreditar menos em Deus e mais na razão, na ciência, e na própria capacidade humana.
Nós passamos a ter essa dádiva que é o poder de construir nossas próprias vidas. E o viver, então, como um longo projeto do qual temos consciência, e no qual vamos encadeando, estrategica e intencionalmente, passado, presente e futuro.
Há tijolos e somos nós os construtores. .
Por via de regra, ninguém se casa, trabalha ou estuda deste ou daquele jeito porque é como seus pais ou seus avós faziam e porque a tradição deve ser mantida a qualquer custo. Pelo contrário, somos ensinados que devemos ir tão longe quanto nossa vontade profunda desejar - e seu poder de consumo permitir, claro, apesar de que este detalhe não é muito mencionado.
E se em algum momento você fraquejar em sua vontade de construir a própria vida há toda uma biblioteca de livros de autoajuda lembrando que o mundo pode girar em torno do teu umbigo desde que você mentalize corretamente as energias positivas, repita o mantra do seu animal interior, ou adote a rotina cotidiana de algum Steve Jobs da vida.
Tudo depende de você, e você sabe disso, e te cobram disso.
Mas a dádiva de poder construir a própria vida logo se torna uma maldição, especialmente quando aquela cobrança aumenta, a ficha cai, e você se dá conta de que não pode construir a vida conforme tudo o que lhe é prometido.
É nesse momento que você percebe que as escolhas são eliminatórias, e que se seguir por X implica descartar Y. E o medo de se arrepender por ter escolhido X é constante. E o pior, você sente que quando X começar a dar problema você simplesmente não terá como voltar atrás - no máximo poderá remediar X, mas Y, meu amigo, nunca mais.
Humanas versus Exatas.
Hobby versus Profissão.
Salário versus Vocação.
Xbox versus Playstation.
Não dá pra ter tudo.
Você começa a entender que encadear cada pedacinho de sua vida, amarrando passado, presente e futuro, é uma responsabilidade imensa; que são tantas escolhas mas você as faz às cegas e que elas podem dar em nada; e entende que a promessa de alcançar a felicidade parece diminuir frente toda a insegurança envolvida no processo.
E num belo dia, talvez na virada de ano, talvez numa crise de meia idade, ou mesmo em uma tarde de frio, chuva e nostalgia, você exclame, sem se dar conta, a perturbação de uma época em que a consciência e responsabilidade sobre nossas próprias vidas atingiram um patamar inédito: poxa, mas e se eu tivesse feito aquilo ao invés disso?
O e se é a pequena vazão emocional de quem descobriu que um mar de possibilidades não se converte necessariamente em um porto seguro, e sofre por todas as oportunidades descartadas e irrecuperáveis. E por isso o e se é perfeito para nós, viventes dessa atualidade tão atual, quando temos a responsabilidade de alcançar a promessa de um mundo de felicidade mas poucas certezas de que nossas escolhas nos conduzirão até lá.
Sejam fantasmas dos natais passados, talvez um anjo, uma entidade misteriosa, ou um inexplicável acontecimento mágico, é sedutora a fantasia de poder ter outra versão da vida, ter aquela segunda chance que vem de uma rebatida certeira, de uma proposta de emprego aceita, de um simples virar a rua aqui e não ali. Pressionados pela necessidade de escolhas incertas, sonhamos com a possibilidade da re-escolha.
E na falta da realidade, as ficções, como sempre, vêm bem a calhar.