A queda de Madalena
E eles andavam apressados. O clima tipicamente urbano era retratado pela espessa fumaça automotiva. A rua fantasiada de avenida estava calma, diferente de todo o resto da cidade, em que se ouvia nas rádios populares das inúmeras confusões de trânsito.
E o pensamento deles dois se resumia na mesma coisa: estavam prestes a se atrasar para o metrô das onze e quarenta. Na verdade, em sua intrínseca individualidade, ela apenas rezava a algum deus mundano para que o metrô os esperasse, pois não conseguiria aturar mais trinta minutos escutando o inflado e escroto ego do garoto.
Ela ainda gostava de tê-lo por perto porque em algum lugar do passado, haviam sido amantes. Não amantes românticos, pois somente ela se doou de alma e coração, ele apenas coexistia na desgastante relação.
Ele parecia estar mais impaciente que ela, embora por motivos distintos. Queria chegar em casa e voltar a fingir na rede ser algo que definitivamente não era: feliz. Sua infelicidade era palpável.
O semáforo fechou. Eram onze e vinte. A caminhada até a estação demoraria ainda no mínimo trinta minutos. Não havia universidade pública na cidade interiorana de onde vinham, então o único modo de cursar o ensino superior era indo até a Capital.
O ar quente ressecava seus lábios e suas gargantas ardiam. As crises sociais tomavam os lugares das relações sociais. O sol do meio dia ardia na extensão de seus corpos cobertos pelo fator protetor solar duvidoso e barato.
Uma mulher apareceu ao lado deles. Outro ser humano que sobrevivia transeunte na imundície da Capital. Ela se empertigava toda enquanto orava para que o semáforo a libertasse da pena.
O semáforo ainda estava vermelho, mas como não havia nenhum carro ou ônibus a vista, a mulher correu. Correu para que atravessasse a rua. Correu para que não pagasse mais do que realmente devia. Mas ela tropeçou. Tropeçou na ignorância do trabalho assalariado. E caiu. E caiu em desgraça. Mas talvez fosse sua hora. Se ela brilhasse ali, seria notada. Seria noticiada até pelos fascinantes rádios que não exibiam cores, mas que fariam questão de dizer que o brilho da sobrevivente, que não sobreviveu no fim das contas, era encarnado. Era escarlate. Era da cor daquela sua bijuteria favorita que imitava um rubi, embora hoje não a usasse porque saíra de casa já atrasada. Era da cor tendência do batom no cunho sexual. Depois de todo o estudo em vermelho, constatariam que ela não era ninguém, isso mesmo, negada duas vezes de ser alguém. Ela somente pseudoexistia. Então arquivariam sua ficha no fundo da gaveta das fichas descartáveis e o mundo seguiria em frente. Ela não poderia brilhar somente para depois ser arquivada. Ela então reuniu toda a coragem que lhe restava. Toda a coragem que a fazia suportar sobreviver para sustentar os três filhos indesejados. Os pais não foram pais por conveniência. Dois homens diferentes, o mesmo resultado. Seriam todos os homens canalhas? Ou somente ela não tinha sorte nem sequer na desgraça? Pobre coitada, não tem culpa de sua ciência. Ela não poderia deixar os três fetos numa lata de lixo de esquina porque o Estado não permitia. Ele não permitia. Então, negada duas vezes da possibilidade de tentar viver, praguejou Jesus Cristo e todos os outros santos que conhecia e se ergueu. Não foi magistral. Muito pelo contrário. A ave estava empoeirada e sem penas. Mal (re)feita. Por que tentar levantar se ficar no chão esperando brilhar embaixo de um carro seria mais conveniente? Ela então percebeu que isso só seria conveniente para si mesma, pois para Ele, ela seria apenas mais bagagem a ser carregada. Mas ela já não era somente um fardo afinal?
Eles então olharam para a mulher que jazia no chão e simplesmente gargalharam. A simplicidade do entretenimento grátis era prazerosa. Ele agora teria bastante material para fingir felicidade na rede. Uma foto tirada de si mesmo rindo amareladamente branco e uma legenda dispensavelmente vergonhosa. Ela ria porque sem hipérbole já não o fizera há meses, embora amanhã fosse um dia circense. Já não havia pão, uma pequena parcela revoltada da população iria passar vergonha ética e moral. “Se meu ponto de vista não for o certo, então não há algum”. Oh ignorância, como lubrificada fico só de saber que sou toda tua!
Madalena foi então sepultada viva. Pobre garota.