fonte imagem: Getty Imagens - Legenda: Woman in restaurant looking at table of business people, portrait Fotógrafo/artista: Allan Danahar
Uma Bisbilhotice Auditiva
É uma delícia quando nossos ouvidos são capazes de atentar para a fala das pessoas em suas conversas particulares. Poderíamos até nomear de bisbilhotice auditiva como uma forma de definir essa atenção à conversa alheia. Certamente, é uma técnica de nunca se sentir só em qualquer lugar e afastar o tédio da demora das filas, sejam elas quais forem, das esperas em rodoviárias, aeroportos, salas de consultórios, mesas de restaurante, quando o assunto da mesa onde estamos sentados se esgotou, e etc. O que seria do dia dos nossos queridos motoristas de táxis, não fosse à bisbilhotice auditiva. Ouvir as falas, os sotaques, as terminologias usadas na comunicação entre as pessoas, que cruzam os nossos caminhos, mesmo quando não entendemos a língua ou o linguajar, sempre nos enriquece como indivíduos comunicadores. Eu me atrevo a confessar que sou uma bisbilhoteira auditiva e não tenho pudor em dizer que anoto, no primeiro pedaço de papel, qualquer termo ou palavra dita ao vento por qualquer pessoa. Os trajetos de minhas viagens então, são sempre muito enriquecedores e nunca terminam sem que a minha bolsa esteja recheada de inúmeros assuntos novos. E sempre foi assim, e assim foi a minha mais recente viagem ao Rio de Janeiro.
Domingo à tarde, depois de um feriadão, Rio de Janeiro num quase inacreditável inverno, com os termômetros marcando 16 graus e quase ninguém na rua. No delírio de minha mente inventiva, eu imagino as pessoas se deliciando na leitura de um bom livro, com uma xícara de chocolate quente do lado. Isso só porque, certa vez li, em algum jornal, que nos países, onde são mais frio, as pessoas criam, desde muito novas, o hábito de leitura por não saírem muito de casa. Para mim, que sou de Minas Gerais, e vivo cercada de montanhas por todos os lados e onde o inverno se hospeda com temperaturas muito baixas, inverno virou sinônimo de momento enriquecedor, um momento de dedicação a muita leitura. Daí a justificativa desse delírio, até porque, se eu também tivesse essa paisagem carioca à disposição de meus olhos todos os dias e um sol comandando as minhas energias vitais, o tempo inteiro, provavelmente, eu não seria uma “escrevinhadora”. Mas vamos ao que interessa, a minha bisbilhotice auditiva.
E lá estou eu, de malas em punho, voltando para casa. Os táxis à disposição são tantos, que parecem cachorros vagabundos em busca de comida do primeiro que lhes oferece um pedacinho de qualquer coisa. O trajeto do Flamengo até a rodoviária é rápido. E como uma boa mineira, que não perde o trem, tenho quarenta minutos pela frente para aguardar o ônibus, na plataforma de embarque. Olho para os lados e vejo algumas pessoas conversando, um casal de namorado se beijando e uma quantidade enorme de pombas, pelo chão, devorando os restos de farelos de pipocas deixados pelos viajantes. Arrisco algumas perguntas, sem respostas, ao fiscal da empresa do ônibus, para passar o tempo até aparecer um senhor que se apresenta como Zé Ambrósio, e me pergunta se aquela é a plataforma de número vinte e nove. Zé Ambrosio agradece a resposta e começa a circular pela plataforma até achar um lugar para se sentar. Meu olhar acompanha Zé Ambrosio, não sei se pelo seu “jeitim mineirim” de ser, ou se pela sua voz, estridente e fina. Só sei que não consigo mais tirar os olhos de seu Zé Ambrósio. Não demora para que ele arrume uma companhia para assuntar, como eu mesma pude ouvir dele, ao perguntar à senhora que se assentou do seu lado.
- Sabe dona, tem três anos que num venho aqui. Três anos, sabe dona.
- É! O senhor veio visitar alguém?
- Vim sim senhora. Meu irmão que de tanto fumar estragou os dois pulmões.
- Como assim, estragou os dois pulmões.
- Sabe dona, ele fumou tanto, mas tanto, que o pulmão dele agora parece um botijão de gás.
- Nunca vi falar nisso não.
- Nem eu.
Zé Ambrósio deu uma trégua de uns minutinhos e voltou a puxar assunto.
- A dona conhece Acari?
- Não conheço não senhor.
- Nossa! Nunca mais volto lá.
- É. Por quê?
- Olha, uma vez fiquei na casa de minha irmã que mora lá em Acari e passei um aperto do peru. Como eu vou explicar pra senhora, eu tava pousando na casa de minha irmã.
- Pousando? O que é isso?
- Sabe não? Como que eu vou explicar pra senhora? Eu fiquei na casa dela para dormir.
- Ah! Entendi. O que que aconteceu?
- Num sabe como é “qui” é lá?
- Não senhor, eu não conheço.
- Olha, há três anos atrás, era madrugada, comecei ouvir tiro pra tudo “qui’ é lado. Fiquei com tanto medo “qui” meu coração, sem mentira, parecia um motor de um trator. Num sabe aquele barulho quando liga o trator? Era daquele jeito. Nunca mais volto lá. Os “moço” quebraram a janela da casa, passaram correndo por cima de mim na cama, até me machucaram com aqueles “pé” sujos. Eu escondi debaixo da cama até o sol quentá. Aí eu peguei minha mala, fui embora e nunca mais dei as “cara”.
Fizeram-se uns segundos de silêncio. Entretanto, eu não consegui deixar de acompanhar os movimentos de seu Zé Ambrósio. A voz de seu Zé me seduzia a ouvi-lo contar os casos para sua companheira de assento.
Não demorou ele puxar conversa de novo. E de um assunto que nem sequer tinha sido “assuntado”. E mais ainda, um assunto sem pé e cabeça, surgido do nada e situando seu Zé Ambrósio, vale lembrar que ele estava na rodoviária do Rio de Janeiro.
- A senhora sabe ali em “Belzonte”
Pelo jeito da senhora, ela nunca deve ter ido a Belo Horizonte, mas para não ficar por fora, respondeu ao seu interlocutor.
- Quase não conheço Belo Horizonte
Seu Zé Ambrósio, meio incrédulo de sua amiga não conhecer Belo Horizonte.
- Não!!! Mas sabe ali, quando chega em “Belzonte”. Logo que a gente chega lá?
- Eu não me lembro direito de Belo Horizonte.
- Mas você devia ir lá. Tem um lugar muito bonito. Oh! Eu vou te ensinar. Quando você for lá não deixa de ir.
- Ah! É. Então me ensina.
- Oh! “Prestenção” quando você tiver chegando em Belzonte
Seu Zé Ambrósio se lembra que esqueceu de dar um detalhe e diz:
- Eu num falei antes, mas você tem que ir de carro, ta? Quando fui lá eu fui de carro.
- Meu filho tem carro, eu vou pedir a ele.
- Então pede mesmo que você não vai se arrepender. Mas continuando, Oh! Quando você estiver chegando em “Belzonte” você vira a direita, aí você vai indo, vai indo, vai indo, até encontrar uma linha de trem, aí você vai ter que atravessar a linha, porque na rua antes da linha se você entrar ela não tem fim e você ainda vai ver um monte de casa pobre. Assim que você atravessar a linha, você vira à esquerda e vai ver um lugar cheio de árvores. Lá é o lugar bonito de que lhe falei. É um parque cheio de árvores. Viu como é fácil?
Nesse ínterim, o ônibus encostou, seu Zé Ambrósio despediu-se da sua amiga, colocou as malas no bagageiro e arrumou logo um outro amigo para conversar durante a viagem.
E eu?
Eu corri para anotar no meu bloquinho as falas de seu Zé Ambrósio na rodoviária, e não perder as histórias faladas durante o trajeto da minha viagem.
Uma Bisbilhotice Auditiva
É uma delícia quando nossos ouvidos são capazes de atentar para a fala das pessoas em suas conversas particulares. Poderíamos até nomear de bisbilhotice auditiva como uma forma de definir essa atenção à conversa alheia. Certamente, é uma técnica de nunca se sentir só em qualquer lugar e afastar o tédio da demora das filas, sejam elas quais forem, das esperas em rodoviárias, aeroportos, salas de consultórios, mesas de restaurante, quando o assunto da mesa onde estamos sentados se esgotou, e etc. O que seria do dia dos nossos queridos motoristas de táxis, não fosse à bisbilhotice auditiva. Ouvir as falas, os sotaques, as terminologias usadas na comunicação entre as pessoas, que cruzam os nossos caminhos, mesmo quando não entendemos a língua ou o linguajar, sempre nos enriquece como indivíduos comunicadores. Eu me atrevo a confessar que sou uma bisbilhoteira auditiva e não tenho pudor em dizer que anoto, no primeiro pedaço de papel, qualquer termo ou palavra dita ao vento por qualquer pessoa. Os trajetos de minhas viagens então, são sempre muito enriquecedores e nunca terminam sem que a minha bolsa esteja recheada de inúmeros assuntos novos. E sempre foi assim, e assim foi a minha mais recente viagem ao Rio de Janeiro.
Domingo à tarde, depois de um feriadão, Rio de Janeiro num quase inacreditável inverno, com os termômetros marcando 16 graus e quase ninguém na rua. No delírio de minha mente inventiva, eu imagino as pessoas se deliciando na leitura de um bom livro, com uma xícara de chocolate quente do lado. Isso só porque, certa vez li, em algum jornal, que nos países, onde são mais frio, as pessoas criam, desde muito novas, o hábito de leitura por não saírem muito de casa. Para mim, que sou de Minas Gerais, e vivo cercada de montanhas por todos os lados e onde o inverno se hospeda com temperaturas muito baixas, inverno virou sinônimo de momento enriquecedor, um momento de dedicação a muita leitura. Daí a justificativa desse delírio, até porque, se eu também tivesse essa paisagem carioca à disposição de meus olhos todos os dias e um sol comandando as minhas energias vitais, o tempo inteiro, provavelmente, eu não seria uma “escrevinhadora”. Mas vamos ao que interessa, a minha bisbilhotice auditiva.
E lá estou eu, de malas em punho, voltando para casa. Os táxis à disposição são tantos, que parecem cachorros vagabundos em busca de comida do primeiro que lhes oferece um pedacinho de qualquer coisa. O trajeto do Flamengo até a rodoviária é rápido. E como uma boa mineira, que não perde o trem, tenho quarenta minutos pela frente para aguardar o ônibus, na plataforma de embarque. Olho para os lados e vejo algumas pessoas conversando, um casal de namorado se beijando e uma quantidade enorme de pombas, pelo chão, devorando os restos de farelos de pipocas deixados pelos viajantes. Arrisco algumas perguntas, sem respostas, ao fiscal da empresa do ônibus, para passar o tempo até aparecer um senhor que se apresenta como Zé Ambrósio, e me pergunta se aquela é a plataforma de número vinte e nove. Zé Ambrosio agradece a resposta e começa a circular pela plataforma até achar um lugar para se sentar. Meu olhar acompanha Zé Ambrosio, não sei se pelo seu “jeitim mineirim” de ser, ou se pela sua voz, estridente e fina. Só sei que não consigo mais tirar os olhos de seu Zé Ambrósio. Não demora para que ele arrume uma companhia para assuntar, como eu mesma pude ouvir dele, ao perguntar à senhora que se assentou do seu lado.
- Sabe dona, tem três anos que num venho aqui. Três anos, sabe dona.
- É! O senhor veio visitar alguém?
- Vim sim senhora. Meu irmão que de tanto fumar estragou os dois pulmões.
- Como assim, estragou os dois pulmões.
- Sabe dona, ele fumou tanto, mas tanto, que o pulmão dele agora parece um botijão de gás.
- Nunca vi falar nisso não.
- Nem eu.
Zé Ambrósio deu uma trégua de uns minutinhos e voltou a puxar assunto.
- A dona conhece Acari?
- Não conheço não senhor.
- Nossa! Nunca mais volto lá.
- É. Por quê?
- Olha, uma vez fiquei na casa de minha irmã que mora lá em Acari e passei um aperto do peru. Como eu vou explicar pra senhora, eu tava pousando na casa de minha irmã.
- Pousando? O que é isso?
- Sabe não? Como que eu vou explicar pra senhora? Eu fiquei na casa dela para dormir.
- Ah! Entendi. O que que aconteceu?
- Num sabe como é “qui” é lá?
- Não senhor, eu não conheço.
- Olha, há três anos atrás, era madrugada, comecei ouvir tiro pra tudo “qui’ é lado. Fiquei com tanto medo “qui” meu coração, sem mentira, parecia um motor de um trator. Num sabe aquele barulho quando liga o trator? Era daquele jeito. Nunca mais volto lá. Os “moço” quebraram a janela da casa, passaram correndo por cima de mim na cama, até me machucaram com aqueles “pé” sujos. Eu escondi debaixo da cama até o sol quentá. Aí eu peguei minha mala, fui embora e nunca mais dei as “cara”.
Fizeram-se uns segundos de silêncio. Entretanto, eu não consegui deixar de acompanhar os movimentos de seu Zé Ambrósio. A voz de seu Zé me seduzia a ouvi-lo contar os casos para sua companheira de assento.
Não demorou ele puxar conversa de novo. E de um assunto que nem sequer tinha sido “assuntado”. E mais ainda, um assunto sem pé e cabeça, surgido do nada e situando seu Zé Ambrósio, vale lembrar que ele estava na rodoviária do Rio de Janeiro.
- A senhora sabe ali em “Belzonte”
Pelo jeito da senhora, ela nunca deve ter ido a Belo Horizonte, mas para não ficar por fora, respondeu ao seu interlocutor.
- Quase não conheço Belo Horizonte
Seu Zé Ambrósio, meio incrédulo de sua amiga não conhecer Belo Horizonte.
- Não!!! Mas sabe ali, quando chega em “Belzonte”. Logo que a gente chega lá?
- Eu não me lembro direito de Belo Horizonte.
- Mas você devia ir lá. Tem um lugar muito bonito. Oh! Eu vou te ensinar. Quando você for lá não deixa de ir.
- Ah! É. Então me ensina.
- Oh! “Prestenção” quando você tiver chegando em Belzonte
Seu Zé Ambrósio se lembra que esqueceu de dar um detalhe e diz:
- Eu num falei antes, mas você tem que ir de carro, ta? Quando fui lá eu fui de carro.
- Meu filho tem carro, eu vou pedir a ele.
- Então pede mesmo que você não vai se arrepender. Mas continuando, Oh! Quando você estiver chegando em “Belzonte” você vira a direita, aí você vai indo, vai indo, vai indo, até encontrar uma linha de trem, aí você vai ter que atravessar a linha, porque na rua antes da linha se você entrar ela não tem fim e você ainda vai ver um monte de casa pobre. Assim que você atravessar a linha, você vira à esquerda e vai ver um lugar cheio de árvores. Lá é o lugar bonito de que lhe falei. É um parque cheio de árvores. Viu como é fácil?
Nesse ínterim, o ônibus encostou, seu Zé Ambrósio despediu-se da sua amiga, colocou as malas no bagageiro e arrumou logo um outro amigo para conversar durante a viagem.
E eu?
Eu corri para anotar no meu bloquinho as falas de seu Zé Ambrósio na rodoviária, e não perder as histórias faladas durante o trajeto da minha viagem.