Rio, rio, rio.
Ela era de fábula e sonho, o maior castelo que já construí. E dentro daqueles muros aprendi a fechar portas e trancar com chaves impossíveis. As paredes que criei pra guardar meu sonho, asfixiaram toda pulsação errante. De rumos certos fui fazendo um caminho, e cobrindo meus rastros de relva a solidão me acompanhava. Eis que só eu atravessava as largas portas de pesadas trancas, e o som do metal que as cerrava ecoava nas paredes manchadas de sangue. Paredes e portas e trancas e chaves e tronos e uma lareira. No dia em que todo éter incendiou-se, só eu escapei. Sem nada nas mãos, como é de praxe, mas fazendo então distinção inexistente entre o que tinha e o que tivera. O castelo de sonho arruinado, e o rei cujos papéis viraram cinza têm mais em comum que mentiras passadas: Ambos são por natureza a essência do que fica, ainda que se desfaça. Formam o leito do rio de memórias, que passam rolando por sobre pedras e ao redor dos galhos e folhas secas. Erodindo o leito e cavando fundo com sua água permanentemente mutante, o rio segue sem nunca parar. O caminho das lembranças para o mar é irrefreável, e se faz de rasgar o que o sustenta. Leva consigo o que havia de sólido, e deixa marcas sem que a própria água permaneça. Nada fica que explique "o que causou isso?" ou que diminua a perda causada pelas memórias que nestes leitos passam.
E passam, contudo e apesar de tudo.
Assim como fizeram passado do rei, do castelo, e das portas, do incêndio, dos presentes e futuros, farão novas memórias presentes do passado, e novos presentes das memórias passadas.
O rio é sem dúvida o companheiro mais certo.