Exigência exata
Aquele cliente estava sendo estupidamente exato. Se o comercial dizia que o biscoito era “sempre fresco” então ele deveria ficar “sempre fresco”. Num primeiro momento ele afirmou que pensara que a guloseima era feita com o elixir da juventude... e depois explicou (pela terceira vez consecutiva) que não era doido.
Exigira falar com o gerente, que se perguntou se seu salário era bom o suficiente para lidar com aquele sujeito com um sorriso. Explicou o óbvio, que o que pedia era quimicamente impossível.
O cliente reagiu dizendo que se baseava no comercial e que, se não tivesse as expectativas atendidas iria processá-los por propaganda enganosa. O gerente decidiu reagir na mesma medida e falou que ele não tinha prova concreta de que o comercial dizia isso. O que aconteceu foi cotidianamente fantástico.
O cliente retirou do seu bolso um pendrive. A visão do artefato tecnológico provavelmente fez o coração do gerente gelar, a julgar pelo movimento que seu braço direito fez em direção ao lado esquerdo do peito...
Mandou, em meio a uma muito mal disfarçada gagueira, trazer-lhe um notebook. Estava no meio do receio e da curiosidade (talvez mórbida), queria saber até onde ele iria chegar com aquilo mas ficava imaginando o preço.
Assistiu ao comercial feito pela equipe de marketing pela milionésima vez. Enquanto o boneco gordo feito a criança obesa que os biscoitos estufavam antes do almoço disse “sempre fresco” (logo entre “contem farinha de qualidade” e “feito com amor”, coisas difíceis de serem questionadas e, portanto, provadas).
Perguntaram então o que ele queria. O consumidor disse que, para continuar sendo consumidor, queria o equivalente a uma quantia para reparação de danos morais, e disse isso na maior naturalidade, como se estivesse ensinando o padre a rezar missa.
Deram-lhe um valor que para ele era a salvação de sua família mas para o mercado de onde saiu os biscoitos era quase nada. O dinheiro tem dessas relatividades. Foi-se feito o contrato com ambas as partes relativamente satisfeitas (o senhor por ter ganho, o gerente por não ter perdido tanto).
Até que veio o segundo requerendo os mesmo direitos...e o terceiro e o quarto. Tentaram mudar o comercial mas a burocracia (este demônio que não filtra quem tenta) tornou o ato comercialmente prosaico numa odisseia capitalista. Até que, de pouquinho em pouquinho aquele mercado foi perdendo seu patrimônio e, um ano e meio depois, declarou falência.
Escrevo isso explicando o porquê da mutação instantânea e aparente censura de alguns comerciais. O governo nada tem a ver com isso...