Relativizando o fim do mundo

.:.

Big-bang, big-bang, big-bang...

Devo estar louco. Faz horas que estou aqui, no segundo andar do cabaré da Rua Floriano Peixoto, e nenhuma das facilitadoras chega. Que droga! São todas tão pontuais, resignadas; estão sempre dispostas a ajudar... O que diabos aconteceu em Santelmo, afinal?

Lembro-me muito bem das dantescas labaredas que arrefeceram o calor dos corpos que deitavam nas camas que viraram cinzas – vi o centro de Santelmo destruído pelo fogo, apocalipticamente, sem que nenhuma torrente de água fosse capaz de deter a fúria de Hefesto; recordo-me do caso do ‘Maníaco da bengala’, da investigação fajuta do Dr. Castrogiovanni, preso pela Polícia Federal quando achava que o pobre do Francisco seria penalizado pelas mortes. Foi, deveras, memorável investigação, com lamentável desfecho. Francisco enlouqueceu e morreu faz algum tempo; o delegado, Dr. Castrogiovanni, depois de sentenciado pelos detentos, teve uma das penas impostas aos ‘x9’: a morte pelo enforcamento.

Santelmo, cheia de peculiaridades e sinas, também foi burilada pela morte do Dr. Augustus. Os doutores de Santelmo, herdeiros do fogo dos navegantes, devem ser almas morredoras, só pode! O priapismo post-mortem do sexagenário, entretanto, ficará na memória e na persistência da retina de muitas mulheres e homens da cidade. Infelizmente, apesar da centena de rezas e orações, o de cujus do Dr. Augustus não ressuscitou. Mais uma tragédia urbana emblemática, mais um mundo findo, na temporariedade que é a vida. Não sei se os faraós estão certos sobre a possibilidade de vida além-túmulo. De toda sorte, não queria esperar minha ‘ressuscitação’ a 196 graus centígrados negativos, congelado em tubos de nitrogênio – depender disso para renascer deve ser trágico! Afinal, quanto tempo duraria a eternidade, se envelhecemos na velocidade dos nossos sonhos e todos esbarraremos na limitação que a finitude da existência nos impõe?

A cronicidade dos vilarejos e de todas as megalópoles, com os devidos aditamentos de quem acrescenta pontos aos contos, vai construindo e desconstruindo vidas. Revelando e escondendo pessoas e fatos, dando singularidade a todos os micromundos do macrocosmo habitável, relativizado pela unicidade de cada ser e objeto tangível ou imaginário. Transito entre o ser e o não ser. Entre o movimento e o estatismo, pois que a minha dimensão de verdade se distancia, numa atividade que se relativiza, dependendo da celeridade que tenho dentro de mim. A matéria corpórea possui as limitações espaciais. O incorpóreo, todavia, vaga e se esvaece na velocidade da luz. Penso aos borbotões. Viajo entre galáxias inimagináveis, mas a sensação que tenho é a de referenciais – para uns, o movimento; para outros tantos, o enfado da imobilidade. Desconfio da unidade do que sou; desconfio que meu mundo seja mera ilusão e não confio no que vejo.

Desejei ser etnocêntrico, acreditando estar em Santelmo a origem dos valores e modelos existenciais. Se o mundo estiver adstrito a isso, a essa dificuldade de percepção das diferenças, Santelmo me causa estranhezas e medo. Haveria distorções perceptíveis e intencionais em nosso modo de entender a finitude? Se a gênese estiver aqui, também daqui brotarão os estilhaços da explosão final do expansivo universo que habitamos. O mundo é o que conhecemos. A morte é a que percebemos... Para a criança, o útero é a dimensão da realidade. Crescemos e expandimos nossos horizontes. Por que o absolutismo da vida e do mundo, se desconhecemos a realidade de tantas mortes e de tantos mortos? O mundo descerra as cortinas para quem nasce. Morrer, portanto, é o cerrar uníssono de todas as cortinas, o último ato da derradeira peça – é o despedir-se da ribalta.

Aproveitando a demora das moças da Floriano Peixoto, que insistem em não aparecer, escrevi essa coluna que circulará amanhã no jornal da cidade. Nem sei se amanhã haverá amanhã, se haverá cidade, mas sangro em cada palavra, assim mesmo. Alheio ao aporrinhamento do editor, viajei nas minhas histórias de Santelmo, sem qualquer pretensão. Na realidade, não escrevi nada – tudo que está grafado nesta folha de papel que tenho em minhas mãos foi inspiração de mortos que ainda vivem dentro de mim. Desenhei os mortos que conheci e que me arrepiam a pele agora, solicitando permissão para que se manifestem. Esse texto tem a cara de Santelmo e de seus defuntos, dos quais sou um deles, escrevendo de um lugar que você, certamente, ainda desconhece. Você não lerá nenhum texto apócrifo, mas inscrições cheias de assinaturas invisíveis a olhares vivos. Tente identificar cada um dos signatários.

Santelmo não fica no fim do mundo nem haverá fim de mundo, enquanto se morrer e se viver, simultaneamente, sobre a face sombria do ainda habitável Planeta Terra. Sobreviver, eis o desafio.

Big-bang, big-bang, big-bang...

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 11/11/2014
Código do texto: T5031683
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.