Imposição da Vida
“Recordar é viver...”, que é inclusive o refrão de uma música de Carnaval. Havia compositores que só apareciam na época do Carnaval. Nesses dias algumas rádios só tocavam músicas carnavalescas. Madureira e Cascadura já tiveram os maiores carnavais do subúrbio. No Méier havia desfile de escolas de samba locais e de outros bairros. E muito mais espaço tinha que haver aqui para que ficássemos lembrando de como eram esses três dias.
Mas não adianta. Não se pode ficar insensível ao se ouvir que “quem gosta de passado é museu”. Vamos seguir em frente. O que passou não volta mais. É uma imposição da vida.
A maior certeza de que estamos envelhecendo é não aceitarmos o que está acontecendo agora. Esse “status quo” nunca foi o nosso, por isso nos choca.
Hoje, para muitos, com certeza é mais surpreendente o pacote turístico que inclui a fantasia para o gringo desfilar que a genitália da bela mulher que encantou o Presidente. Pelo menos para aqueles que faziam suas próprias fantasias.
A venda de ingressos pelos classificados também não deixou de ser uma novidade nesse Carnaval. Tudo se moderniza. O Carnaval não poderia ficar imune.
O povão também não. Ironicamente, cada vez mais alijado da festa que criou. A maioria das pessoas que transitava pela Marquês de Sapucaí, e que não iria ter acesso ao Sambódromo, era de cor negra. Evidência de uma distribuição de oportunidades, de empregos, de renda que não beneficia a todos. Ou seja, na verdade não beneficia a maioria. O extenso contingente de vendedores ambulantes, sem barraquinhas, quase que se confundia em número com os transeuntes.
Para quem se dirigisse ao Setor 1, a pé, passando pelo Centro Administrativo São Sebastião (CASS), o acesso não poderia se mais dificultoso. Deveria tomar a pista lateral da Av. Presidente Vargas com mão para a Praça da Bandeira. Só que foram fechadas praticamente todas as passagens sobre o Canal do Mangue entre as pistas da Presidente Vargas. Assim, mesmo que a pessoa estivesse bem próxima à Marques de Sapucaí, deveria retornar ao CASS para poder atravessar. Um desrespeito ao público. Aliás, o Setor 1 é outro desrespeito. Nada se vê de evolução, de desfile, pois naquele trecho as escolas estão se aprontando.
A atitude do folião de hoje é passiva, em contraste com a participação ativa que tínhamos em outras épocas no Carnaval. Não existem, por exemplo, mais blocos de rua. O Cacique perdeu a garra. O Bafo, a onça.
As bandas (“made in” ZS), novidades da orla, jamais evoluem; passam rapidamente, permitindo que sejam facilmente identificadas como um dos muitos fatores de promoção comercial (Skol, Antarctica, Brahma, etc.)
Confete e serpentina são termos praticamente tão extintos quanto galocha.
As pessoas que desfilam nas grandes escolas nada mais são que figurantes. A exceção fica por conta dos destaques, que desejam apenas figurar, isto é, aparecer. Tanto isto é verdade que numa determinada agremiação o carro quebrou, foi retirado e seus integrantes também tiveram que abandonar o desfile. Carro e gente são alegoria.
Onde estão as Irmãs Marinho? Certamente existem muitas por aí. Mas a câmara não perde tempo com passistas sambando no pé.
Estamos vendo o fim do Carnaval. Em breve haverão de achar um outro nome para esta festa. Um outro fenômeno atesta este fato: o carioca está saindo do Rio no Carnaval. Ou é para pular em Salvador, Fortaleza, Recife ou Porto Seguro. Ou é para se refugiar na serra ou em outro lugar. Aliás, os bailes também estão acabando. No Baile da Cidade havia menos de cem pessoas, entre organizadores, garçons, ritmistas e participantes. Nessa época, também se consegue aqui um pacote turístico para Salvador, incluindo fantasia para sair no Olodum, bloco em que a maioria dos integrantes agora parece que é de cor branca. Sinal dos tempos. Imposição da vida.
Rio, 21/02/1994