O BEM-TE-VI

Numa tarte do mês de maio deste ano, mês consagrado a Nossa Senhora, mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, estava eu no meu escritório quando, de repente, entra pela janela um passarinho, que identifiquei, pelo papo amarelo, como sendo um bem-te-vi, mesmo porque acho que era ele que cantava num pé de castanhola em frente. Tomei um susto com sua entrada insólita, parecendo ele tão desorientado e assustado que não parava de voar por todos os cantos. Com pena dele, fechei a porta de entrada do escritório, abrindo as duas janelas laterais para facilitar a sua saída. Lembrei-me dos poemas de Mário Quintana, de Carlos Drummond, sobretudo de Cora Coralina:

“Qe terás visto?

Há quanto tempo tu avistas, bem-te-vi?

Bem-te-vi da minha infância, sempre a gritar

Sempre a contar fuxiqueiro

E não viste nada

Meu amiguinho preto-amarelo

De que ninho nasceste, de que ovinho saíste

E quem te ensinou a dizer bem-te-vi?

Bem-te-vejo queria eu também cantar e repetir

Bom-dia Bem-te-vejo, te escuto

Bem-te-vi sobrevivente

de tantos que já não voam sobre o rio

nem pousam nas palmas dos coqueiros altos...

E prossegue a tristonha poetisa por mais quinze versos.

Lembrei-me da minha infância. Numa casa grande, próxima à nossa, havia uma tamarineira cuja copa se avistava do alpendre da dos meus pais. Todas as manhãs sua copa se enchia de pássaros, dentre eles os bem-te-vis a cantar o seu refrão. Havia lá em casa uma empregada, uma preta velha, que implicava com o seu canto e gritava: “o que foi que você viu, seu bem-te-vi? O “c.” da gata quando abriu?” Mamãe ria a valer...Mas lembrei-me, que, ainda meninote, gostava de criar em gaiolas pássaros de toda a variedade – canários, golinha, pintassilgo, cabeça-vermelha, graúna, papagaio e outros, que me tomavam bom tempo da manhã limpando as gaiolas, dando água e comida (milho-alpiste), xerém de milho, etc. – mas que me alegravam com o seu canto, embora não saiba se esse canto era de alegria ou de tristeza, com saudade da vida livre de que desfrutavam nas matas, se bem que houvesse alguns, como o papagaio e o periquito, que, ensinado desde novo (porque geralmente eles eram capturados desde novos, ainda nos ninhos), aprendiam a falar e a cantar. Alguns, até, como o papagaio que eu criava já aqui em Natal, que, quando me mudei da casa para o apartamento em que moro, mandei para a casa de minhas irmãs em Mossoró, e lá ficou num mutismo triste, nunca mais falando, até que morreu, certamente de tristeza.

No meu tempo de criança, quando a rua não era ainda calçada e era coberta de mato, em todo verão apareciam, não sei vindos de onde, centenas de canarinhos amarelos, gorjeando e trinando seu belo canto. E eu colocava uma gaiola com um casal e um alçapão para atraí-los e capturar mais algum e criá-lo para treinar e botar para brigar com os de Zé Câncio, meu amigo. Havia domingos em que os donos de canários de briga, assim como os de galos, se juntavam para pôr seus pássaros para brigar, ou só por divertimento ou por apostas (o que foi proibido no Governo de Jânio Quadros), mas coisa que, independente disso, hoje eu não faria mais. Até porque hoje é proibido criar, caçar e vender pássaros nativos.

Tudo isso passou pela minha cabeça durante os quase 10 minutos em que o bem-te-vi esvoaçou e, quando parecia já cansado, encontrou a saída. Não só ele, mas eu também fiquei feliz. Nunca acontecera isso antes e espero que jamais aconteça de novo. Talvez fosse aquele mesmo bem-te-vi que me saudava com um “bem-te-vi” quase todas as vezes em que eu assomava à porta da varanda do prédio onde moro. Foi, pois, um alívio vê-lo escapar.

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 17/10/2014
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