Serpente-de-paraíso
Curioso vizinho de rua. Não o via nem sabia mais dele desde começos dos 1990s, quando me casei e fui morar no Jardim Carioca, bairro da Ilha do Governador, há quatorze anos. Mas já nos primeiros dias do meu regresso a Marechal Hermes, sem a mulher e assoberbado de dívidas embora pronto para outra, contaram-me na Pastelaria do Lee que ele, o tal vizinho, tinha certa manhã marcado bobeira ao atravessar nossa principal avenida e fora atropelado por uma ambulância desatinada, morrendo dali a instantes. Logo verão por que esse detalhe fatal tinha absolutamente tudo para dar veracidade à notícia.
Bem, ontem à noite, ao voltar de uma sueca com os aposentados e os desocupados da área, cruzei com o fantasma do homem na entrada do Hospital Carlos Chagas. E que fantasma!... Bem-vestido, empinado e arrogante como um acólito de chefe político, vendendo mais saúde que os boateiros vivos do pedaço. Fiz uma cara tão assustada quando apareceu na minha frente, que ele na mesma hora entendeu a situação.
“Ninguém morreu, meu amigo, ninguém morreu”, disse o gaiato, obrigando-me a beliscá-lo nas duas bochechas, sem ligar importância à vigilante maledicência local. “A gente some um pouquinho”, continuou, “e esses pinguços da esquina começam a inventar que o pobre coitado esticou as canelas, entrou em cana ou foi internado como louco. Não só não morri — o amigo não está vendo? —, como continuo firme no meu ponto privilegiado.”
Ficamos nisso.
O malandro deve contar agora os seus setenta e cinco de idade e sempre fomos meros conhecidos, sem grandes simpatias de parte a parte. Eu era ainda adolescente, presunçoso leitor da biblioteca anarquista de um professor do ginásio, quando o meu falso fantasma criou por aqui, nos 1960s, um coletivo da esquerda troglô, depois transformado em comitê de candidatos chaguistas da pior espécie, na época da ditadura, e hoje reduzido a dois cabos eleitorais (ele e um coronel reformado) que a cada rodada de eleições conseguem servir a Deus, ao Diabo e ao Escambau. Não querem outra vida.
Mas a verdadeira fama desse homem que, como ele mesmo disse, continua firme no seu ponto privilegiado decorre de uma doença. Ou seja, deve ser doença. Pois há mais de quarenta anos é um paquerador de porta de hospital e não conhece outra forma de dar em cima das mulheres — eis por que era bastante fácil acreditar no episódio da ambulância desatinada.
Bom de lábia entre as mais incautas, cuidadoso com a aparência pessoal, sempre disposto a quebrar o galho daquelas que têm coragem de trazer os seus doentes ao Carlos Chagas, circula entre os grupos no saguão de espera com um olho infalível para mulheres bonitas e boas de conversa. Não é abusado. Sabe insinuar-se como uma serpente-de-paraíso, prestativo, superotimista nos casos mais desesperadores, um anjo, um verdadeiro anjo. E discreto. Parece um médico dos velhos tempos conversando com os familiares de um paciente recém-internado. Tem sempre uma sugestão na ponta da língua, um trunfo na manga para os lances mais difíceis, uma simpatia postiça bastante desagradável para quem o conhece, mas que nesse ambiente de apreensão e sofrimento acaba pegando todo mundo desprevenido. No final, deixa com a vítima o seu cartão de visitas, cujo cabeçalho impressiona as mais humildes: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Embaixo, o próprio nome, completo. Mais embaixo, ASSESSOR PLENO, o que quer que isso signifique. No rodapé, endereço, telefones e e-mail.
Em diferentes épocas desses quarenta anos de paquera chegou efetivamente a viver com cinco ou seis mulherões conquistados na porta ou no saguão do hospital, matando de inveja afetos e desafetos. Mas todas o abandonaram ao cabo de alguns meses, fazendo a caveira do truculento (elas o disseram) cabo eleitoral de subúrbio. Contaram horrores sobre ele, mas isso fica para outro cronista.
Quanto a mim, basta saber que não vi fantasma nenhum e que posso dormir em paz. Bem de saúde como está, tenho certeza que daqui a uns quinze anos, em plena faixa dos noventa, ainda o encontraremos em atividade, de terno branco, bengala na mão, mendigando votos e paquerando as velhinhas na fila do ambulatório.
[21.5.2007]
Curioso vizinho de rua. Não o via nem sabia mais dele desde começos dos 1990s, quando me casei e fui morar no Jardim Carioca, bairro da Ilha do Governador, há quatorze anos. Mas já nos primeiros dias do meu regresso a Marechal Hermes, sem a mulher e assoberbado de dívidas embora pronto para outra, contaram-me na Pastelaria do Lee que ele, o tal vizinho, tinha certa manhã marcado bobeira ao atravessar nossa principal avenida e fora atropelado por uma ambulância desatinada, morrendo dali a instantes. Logo verão por que esse detalhe fatal tinha absolutamente tudo para dar veracidade à notícia.
Bem, ontem à noite, ao voltar de uma sueca com os aposentados e os desocupados da área, cruzei com o fantasma do homem na entrada do Hospital Carlos Chagas. E que fantasma!... Bem-vestido, empinado e arrogante como um acólito de chefe político, vendendo mais saúde que os boateiros vivos do pedaço. Fiz uma cara tão assustada quando apareceu na minha frente, que ele na mesma hora entendeu a situação.
“Ninguém morreu, meu amigo, ninguém morreu”, disse o gaiato, obrigando-me a beliscá-lo nas duas bochechas, sem ligar importância à vigilante maledicência local. “A gente some um pouquinho”, continuou, “e esses pinguços da esquina começam a inventar que o pobre coitado esticou as canelas, entrou em cana ou foi internado como louco. Não só não morri — o amigo não está vendo? —, como continuo firme no meu ponto privilegiado.”
Ficamos nisso.
O malandro deve contar agora os seus setenta e cinco de idade e sempre fomos meros conhecidos, sem grandes simpatias de parte a parte. Eu era ainda adolescente, presunçoso leitor da biblioteca anarquista de um professor do ginásio, quando o meu falso fantasma criou por aqui, nos 1960s, um coletivo da esquerda troglô, depois transformado em comitê de candidatos chaguistas da pior espécie, na época da ditadura, e hoje reduzido a dois cabos eleitorais (ele e um coronel reformado) que a cada rodada de eleições conseguem servir a Deus, ao Diabo e ao Escambau. Não querem outra vida.
Mas a verdadeira fama desse homem que, como ele mesmo disse, continua firme no seu ponto privilegiado decorre de uma doença. Ou seja, deve ser doença. Pois há mais de quarenta anos é um paquerador de porta de hospital e não conhece outra forma de dar em cima das mulheres — eis por que era bastante fácil acreditar no episódio da ambulância desatinada.
Bom de lábia entre as mais incautas, cuidadoso com a aparência pessoal, sempre disposto a quebrar o galho daquelas que têm coragem de trazer os seus doentes ao Carlos Chagas, circula entre os grupos no saguão de espera com um olho infalível para mulheres bonitas e boas de conversa. Não é abusado. Sabe insinuar-se como uma serpente-de-paraíso, prestativo, superotimista nos casos mais desesperadores, um anjo, um verdadeiro anjo. E discreto. Parece um médico dos velhos tempos conversando com os familiares de um paciente recém-internado. Tem sempre uma sugestão na ponta da língua, um trunfo na manga para os lances mais difíceis, uma simpatia postiça bastante desagradável para quem o conhece, mas que nesse ambiente de apreensão e sofrimento acaba pegando todo mundo desprevenido. No final, deixa com a vítima o seu cartão de visitas, cujo cabeçalho impressiona as mais humildes: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. Embaixo, o próprio nome, completo. Mais embaixo, ASSESSOR PLENO, o que quer que isso signifique. No rodapé, endereço, telefones e e-mail.
Em diferentes épocas desses quarenta anos de paquera chegou efetivamente a viver com cinco ou seis mulherões conquistados na porta ou no saguão do hospital, matando de inveja afetos e desafetos. Mas todas o abandonaram ao cabo de alguns meses, fazendo a caveira do truculento (elas o disseram) cabo eleitoral de subúrbio. Contaram horrores sobre ele, mas isso fica para outro cronista.
Quanto a mim, basta saber que não vi fantasma nenhum e que posso dormir em paz. Bem de saúde como está, tenho certeza que daqui a uns quinze anos, em plena faixa dos noventa, ainda o encontraremos em atividade, de terno branco, bengala na mão, mendigando votos e paquerando as velhinhas na fila do ambulatório.
[21.5.2007]