O Mercado de Cristo
Quem chega tarde em casa ou acessa de madrugada os canais da TV aberta se depara com um espetáculo que pode ser exultante – para quem admira a competência dos verdadeiros próceres da falsidade ideológica, travestida de religiosidade. Ou deprimente – para quem relaciona o uso comercial da propaganda a questões pretensamente religiosas.
Em termos de amparo na Constituição Brasileira, será liberdade de expressão (religiosa) ou de persuasão?
Dias atrás focalizei uma dessas terríveis emissoras (da madrugada). Um cara, jovem ainda, entrando talvez pela meia idade, enumerava as suas proezas. Provavelmente desempregado, vivera por algum tempo na casa de um amigo. Depois, conseguindo equilibrar-se, adquirira um Peugeot 403 ou 404 ou 400 e sei lá; mais tarde, um Citroen Xsara; em seguida um Corolla; e finalmente uma Mercedes “zero bala”. Ao longo dessa ascensão, comprara uma casa com vários quartos, piscina, sauna, churrasqueira, etc. (e aí apareciam imagens do imóvel, mostrando o cidadão na piscina com o filho). Não faltaram também referências a viagens ao exterior (Las Vegas, Dallas, New York, Disneylândia) e outras.
Tudo isso após ter se integrado ao convívio da ... (aí menciona o nome da igreja, por sinal nomes todos parecidos). Venha você também juntar-se a nós: rua tal, número tal, etc. Mas não disse “e contribuir com grande parte do seu salário, jóias, escrituras de imóveis que possuir, etc.”
Foi até onde me permiti chegar, antes de desligar a famigerada TV.
Tudo a ver com o que de melhor existe em termos de propaganda para apostas em mega-sena, loteria esportiva ou mesmo sobre o-que-você-vai-fazer-com-a-grana-que-ganhar-no-BBB.
No dia seguinte, ao passar por uma rua em Jacarepaguá, numa faixa em frente à marquise de uma loja, leio em letras garrafais: BREVE JESUS CRISTO. Como poderia ter sido: BREVE TUBARÃO (o filme), ou BREVE PIZZARIA ou BREVE AGÊNCIA DE AUTOMÓVEIS, etc. É o que podemos chamar de o mercado de Cristo.
Dias depois recebo de um amigo um e-mail sob o título A Briba (na verdade o que se queria dizer era A Bíblia). No e-mail, numa linguagem tanto peculiar quanto cômica, face à utilização do registro informal da língua na sua forma mais simples, o orador (ou novamente um pastor) buscava o apoio do chamado livro sagrado para exortar os ouvintes a seguirem o que Deus ou Jesus Cristo determinou.
Vem então uma amiga, por conta de interesses comuns em projetos de alcance sócio-cultural, falar-me das OSCIP’s – Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público. “Sabe por que tem tanta igreja por aí? Porque elas se oficializam como OSCIP”. Uma OSCIP é “uma organização constituída para fins não econômicos e finalidade não lucrativa”. Entretanto, em linhas gerais, desde que credenciada, ela pode obter incentivos ou auxílio financeiro de empresas que ficam autorizadas a fazer a dedução dos valores (ou parte deles) da sua declaração do Imposto de Renda. Além de ser isenta de uma série de taxas e emolumentos.
Trata-se de muito conflito para uma cabeça como a minha que, a partir dos tempos de criança, vendo A Vida de Cristo em cenas do cinema mudo, acostumou-se com as imagens do (esse, sim) grande pastor expulsando os comerciantes da casa onde se reunia com os seus seguidores.
Considero, por tudo isso, que o que se faz hoje com a religião é tão pernicioso, perverso e violento quanto o que fazem os marginais, os maus policiais, políticos, juízes e médicos contra a população. Sobretudo no que diz respeito à parcela mais fragilizada econômica e culturalmente. Os mais necessitados. Que não tem condições de oferecer qualquer tipo de crítica ou de reunir meios de se proteger desse assédio altamente agressivo. Que ocorre preferencialmente durante a madrugada, em que se afigura maior o desespero dos que não conseguem dormir em função dos “demônios” que não sabem como combater. Assédio que é tanto mais eficiente quanto mais abrangente é a sua aceitação, pelo fato de encontrar amparo na nossa Constituição.
Liberdade de expressão religiosa. Sendo ela utilizada para enganar pessoas fragilizadas pelos desenganos e vicissitudes da vida, não deveria ser considerada liberdade. Trata-se na verdade de uma prisão, a que estão sujeitos os que não têm condições de, a partir da própria ajuda, descobrir um caminho melhor.
Rio, 03/02/2010