O CÃO MORTO
À margem da estrada escura, realçado pelo facho de luz, um súbito volume perturba a superfície suave. Para quem viaja com certa frequência a imagem já é esperada. Não se pode contrariar a lei estatística que distribui, de quilômetros em quilômetros, os monturos do que um dia foi um animal.
Luz alta. Atenção. Não quero mais vítimas ignorantes de como funciona o mundo dos homens. Ou as leis da física.
Aquele cão (era um cão aquela massa irreconhecível de carne moída?) poderia ser motivo de alegria para alguém, que exatamente agora interpelava desconhecidos se haviam visto um cachorro meigo, de pelo caramelo. A vasilha, com a comida intacta, recebia a visita maciça de formigas incansáveis. Haveria, certamente, ossos plásticos desgastados próximos a uma minúscula cama suja, contemplada pelos olhos chorosos de uma menina. No seu convívio íntimo, a distância comunicativa que isola as espécies sumira, e era extenso o vocabulário que somente os dois compartilhavam.
Ao volante, varando o breu, pensava na triste menina. Talvez ela, como o cão (seria mesmo um cão?), amasse uma determinada hora do dia. A mochila talvez sacolejasse em suas costas, na pressa de rever o amigo. E haveria uma soleira de porta onde ele aguardaria paciente, com os olhos vigilantes em uma esquina.
Mas refletir sobre aquela cena, a partir da dor humana, era quase um ultraje. Havia um ser, um punhado de carne triturada marchetada a pelos, cuja forma seria impossível de se recompor a partir dos restos, desonrosamente exposto no asfalto escuro. Era a isso e não a alguém que logo teria outro animal a lamber-lhe a cara que eu concentraria minha compaixão.
Era uma ideia nobre e tê-la formulado deu-me uma sensação boa. Em parte porque de certa maneira sentia-me homenageando aquele pobre cão desconhecido, compensando-lhe o fim horrível, e em parte (e esta parte era maior) porque o encadeamento psicológico dos meus pensamentos parecia conduzir-me a uma possível narrativa. Um texto condensado em dor, tragédia, afeto e egoísmo humano.
Mas novamente, por outra via, eu me desviava do cachorro.
Não. Era naquele cão que teria que pensar. Naquele monte de destroços, naquele ser indistinto, revirado pelo avesso, que um dia fora um cão (se um cão fosse). O que importava era o terror da cena: um cão apenas, estatelado como um tapete velho, sem cauda, sem rabo abanador, tragicamente morto, sem menina a esperá-lo. Este seria o fim das minhas reflexões. Um cão morto. Somente. Sem literatura.
Parecia um fim interessante, um desfecho apropriado para as reflexões, que caberiam numa narrativa.
Um prazer começava a querer aumentar em mim. Senti uma necessidade premente de extravasar minhas ideias.
Pisei com mais força, aumentando a velocidade.