DO PORQUÊ MINHA FAMÍLIA NÃO É ESPÍRITA
Como todo descendente que se preze, os membros da família Basso tentaram conseguir a cidadania italiana. Por vários anos e em diferentes tentativas, colecionamos sucessivos fracassos. Visitamos museus de imigrantes, cidadelas pitorescas, pequenos cemitérios. Folheamos livros de registros seculares e gigantescos, encontramos documentos perdidos. Coisas que nos ajudaram a nos conhecer melhor. Nada além.
Um inesperado apêndice, sufixado ao nome do meu bisavô por algum funcionário de alfândega distraído, condenou-nos a esta terra generosa e morena, até que algum casamento transatlântico nos redima.
Dias desses, ainda nesta luta e já sem esperança, recorri à internet, com a mesma fé com que meus ancestrais pediam dádivas aos seus santos. Digitei “Vicente Basso”. Quais eram as chances de, espremida entre bytes, restar alguma informação de uma pessoa comum, morta trinta anos antes do advento da rede?
Em instantes, brotou um resultado que envolvia meu bisavô, Chico Xavier e uma dolorosa história de nossa família, ocorrida cinco meses antes do meu nascimento.
Era o relato da morte trágica, que eu desconhecia, de um jovem e promissor primo de segundo grau, seguido de cartas psicografadas pelo médium, nas quais era descrita a vida além-túmulo, num crescente de adaptação à nova condição de morto. Na primeira carta, menos consciente de sua transformação, meu desconhecido parente é amparado pelo nono. A partir da segunda, o estilo muda radicalmente: torna-se despojado, mais próximo da linguagem de um jovem daquela época.
Comentei o achado com minha mãe no almoço do dia seguinte.
Recentemente, eu a levara assistir “Nosso lar”, supondo que a agradaria. Mas a perspectiva de outro céu, concorrente da sua concepção católica, não lhe seduziu. O seu já estava todo loteado e velhos conhecidos esperavam por ela, cheios de novidades.
Ela lembrava-se da história, da dor de uma mãe que perde um filho tão novo e da sugestão de uma tia, para que se escrevesse ao religioso, a fim de obter consolo.
Ninguém da família, entretanto, creu no trabalho mediúnico. As razões para esta desconfiança estavam em um só detalhe, uma única informação daquelas cartas, suficiente para desmenti-las: psicografar a presença do meu bisavô amparando e confortando alguém, compromete toda a credibilidade. Situá-lo em qualquer lugar, que não seja o inferno, é outro agravante.
Das nossas pesquisas, surgiram relatos que compuseram uma imagem tirana de meu ancestral: o leite bebido diretamente na garrafa, para dar asco e não ser dividido; o desperdício com os amigos e a miséria no lar; o direito exclusivo às partes nobres do frango; as bebedeiras; meu avô que se viu forçado a partir, sem poder levar sequer uma enxada.
Mesmo morto, após tantas décadas, sua sombra parece querer atravessar as gerações. É ele, e não um documento incorreto, quem atrapalha os sonhos de sua descendência.