Iconoclastas do viver
Peguei-me um dia desses observando absorto minha irmã a utilizar uma tesoura, nada muito incrível, visto a atração quase barroca de seres tão distintos e tão complementares, a ousadia do corte aliada a inocência do empirismo do saber... E ela picotava com avidez alguns pedaços de papel, até aí ela ia bem, até quando submetida a ordens superiores foi obrigada a recolher os pedacinhos do picotar, eis que a tarefa divertida fica prejudicada...
E não somos muito diferente disso, as idades variam, mas a sensação de estar em poder de algo perigoso e poder usá-lo é mais forte que a razão empirista e que o ímpeto quase inútil de um coração uma vez dilacerado, cortamos sem muita pena. Não que seja algo fácil, mas é rotineiro, alguns tem um verdadeiro dom de cortar, seja relações, esperanças, futuros, e com quanta frieza e abstração o fazem. Infelizmente tive o desprazer de já ser dilacerado, quem nunca o foi que corte os pulsos, você nunca se relacionou, com amigos, parentes, ou namorados... O bom da vida não é o superar do corte, mas o curativo do agressor.
Aqueles que não ousam lidar com tesouras hão de viver sempre imperfeitos, até porque muitas vezes, é necessário um corte aqui, outro ali para aparar pontas, arestas, e também limpar as sobras, uma verdadeira lapidação de papéis, seja de esposo, amigo, filho, e como não podemos estar sempre em posso de uma tesoura afiada, começamos com pontas arredondadas, é nosso primeiro teste, cortamos os corações dos pais ao agir errado, mas é nosso jeito de dizer que temos cultura, escolhemos, cortamos mesmo, temos corações intactos, mãos ansiosas, e uma incrível vontade de contraverter ordens.
Como tudo o que se vive é de aprendizado crescemos um pouco, ampliamos nossas redes de relações e, com ela, nossos papéis e suas iminentes imperfeições, lições, adaptações de nosso eu animal. A adolescência é aquela mistura de aprendiz afiado com o já experiente lado mau, culminando numa fase Edward mãos de tesoura, em que tudo que tocamos tem um corte, não somos polidos, medidos, mas só cortamos, e aí aprendemos um pouco mais, o empírico aprendizado do corte, também começamos a ser cortados, obviamente pelo contato exacerbado com pessoas de nossa idade, primeiras suturas em peitos destemidos, cai o herói, os sinistros e desastrados que logo vão dar origem a mais cautelosos usuários da arte de picotar, os alfaiates adultos.
E como a maturidade sempre chega, nem que seja pela obrigação, começamos a medir mais, ficamos mais exigentes com nossos cortes, fiapos não passam facilmente pelo nosso crivo, e já lidamos com o que é material melhor, sabemos escolher sabiamente os tecidos para as melhores roupas, os melhores cortes, enxergamos buracos de agulhas, cortamos pouco, mas somos precisos demais, e sobra pouquíssimo papel para retalhar... Até que chegamos a uma fase mais cabeleireiro, conseguimos passar da fase material a algo mais humano, modelamos com a tesoura, reformulamos as pessoas com elas, sabemos manuseá-las tão habilmente que poucos toques bastam a um rejuvenescer.
E ainda existem os carecas, de alegria ou tristeza eles são formados, também pela tesoura, talvez pela fúria inconsistente dos experientes que não tiveram experiência suficiente, ou pelo não-amadurecimento que levará ao em podrecer... Mas, é perceptível a falta de habilidade já no fim da vida, é a mão que treme, a tesoura que cega, a visão que embaça, é o nosso recomeçar do ciclo, a nossa saudosa mania de tentar voltar a tesoura “sem ponta”, o nosso reconhecer que já machucou demais, e que a vida seria muito mais fácil se continuássemos a usar tesouras arredondadas e coloridas... A nossa velha infância.
Após tantas reflexões fui acordado do transe por um grito mais alto, algo soando como ordem materna junto a um desobedecer infantil, cortes pequenos, arestas, irregularidades que fiz questão de cortar, ou ao menos separar, mas não posso dizer que gostei da bagunça pós-arte que foi causada na nossa sala, mas ao mesmo tempo, não posso negar minha reza incessante para que minha irmã nunca largasse sua tesourinha e soubesse, como ninguém, a juntar sabiamente os restos de papel.
Gabriel Amorim 20/05/2014