TOLERÂNCIA

Fui discutir tolerância com os jovens. Saí. Ou saía eu intolerante. Saí antes. Fui dar um trago na atmosfera. Saí, mas volto.

A molecada uniformizada reclamava da falta de liberdade na escola: – não pode o celular, não pode a internet, não tem aula além do giz, precisa copiar, caneta e papel, hoje, ainda hoje?

Decerto os velhos não entram em acordo com a modernidade.

– aula pra que, se tem no gúgol? – indagou o mais arrojado.

Claro que atualmente os oceanos dispensam a bússola. Óbvio que quase não faz mais sentido ir até a locadora de vídeos. É fato que alguém alfabetizado nas teclas confunde lápis com onomatopéia.

Não há papo quando o papo é tolerância. Ao pensar em tolerância, manifesta-se intolerância. Esqueça os modelos matemáticos, ninguém de nós estará preocupado se é de toda juventude que se diz, se é apenas a juventude brasileira, ou somente a do bairro, a do convívio nosso limitado de cada dia. Esqueça o genérico, a generalização ou o generalíssimo: nenhuma imposição aqui é matematicamente ponto final ou latinamente et cetera. A livre expressão dessa juventude não faz dela um delta pleno, tampouco a posição colocada entre mim e o meu meio não deve falar apenas de mim e do meu meio, mas de todo mundo e de todos os meios, por serem, justamente, todo mundo e todos os meios, os modelos de um mundo focado em não ter modelos, mas que deles não consegue escapar.

Fui discordar da intolerância de outros jovens. Vizigodo nenhum poria defeito: os de agora estão hábeis nisso.

Não há papo quando não há papo por conta da intolerância: peguei o busão, tornei-me à casa que me abriga e não tranqüiliza. Pela rede avisto um boi na linha. Confundo o tempo verbal com as piadas dos anos oitenta. Tentei me valer do fato de que o meu trabalho paga o meu salário, mas, por alguma admiração pouco humana ao dinheiro, consideram haver bondade em quem me paga. Afinal, é dele que eu dependo, do valor bondoso de quem me paga, segundo o espectro que ronda a internet. E por que diabos a bondade de quem me paga me obriga a acordar cedo, em vez de me permitir umas horas – ou uns dias – a mais em casa? Curioso pensar que nem o melhor teórico da economia do indivíduo supôs bondade em quem nos paga, curioso é que quase ninguém sabe sobre a riqueza de todas as nações, curioso é que a palavra “teoria” dá medo e isso nem desperta tristeza coletiva. É melhor sair dos fóruns, do blogue, e voltar para a rua. Ler os comentários de hoje, logo abaixo à postagem feita ontem, faz lembrar o preço do analista. Às ruas, às ruas.

Voltei. À mesma balada dos jovens do início. Estavam menos dispostos a reclamar e esqueceram que havia escola: felicidade à vista, bolsos fartos de esperança, juventude de mão cheia. Ainda uniformizados. Meninos e meninas. Caso estivesse eu, enquanto pai, à procura de minha filha e dissesse ao segurança: “o senhor viu uma moça de vestidinho?” “o senhor viu uma menina de saia branca?”. Ou à procura do filho: “o senhor viu um menino de calça e camisa escuras?” “o senhor viu um rapaz de cabelo armado, camisa xadrez e calça branca?”. Festas juninas à parte, vestissem outras fantasias e meus filhos nem estariam ali, mas a liberdade é a justiça da festa. É o bolo do direito. Reclamar ninguém reclamou, estavam na fila e havia muita curiosidade no ar. Entre os jovens, claro. Mas uns dois ou três vieram puxar assunto. Coisa de adulto. Falaram de um jovem amarrado ao poste, de um terrorista de turbante, de impostos e coisas e tal. Estavam realmente ligados às atualidades. E viva o gúgol!

Saí e fui à lanchonete próxima. Enfrentei a fila com pose de quem estava ali de passagem. Faz bem ao mérito. De repente uma mesa liberou e dois casais se indispuseram pelo olhar, mas a gordinha sentou primeiro. Coube ao namorado (creio eu, ou noivo, talvez; coisa além de peguete, com certeza!) recuperar o lugar na fila. Em questão de segundos, outra mesa vagou. Pouco mais, e a fileira ao lado já tinha mais três mesas livres. A mãe sentou-se com os três filhos ligadíssimos ao telefone e comeram e mal se olharam e sorriram compartilhando mensagens e se levantaram, a fila havia avançado apenas três passos. A minha pose de pressa ficou até constrangida. Voltei ao normal e logo fui para casa.

Não quero chegar à conclusão alguma, não quero variar a moda e estou indisposto – o lanche não caiu muito bem. Ainda tenho uns drops na bolsa, ajudam a tirar o amargo. Vim escrever acerca da intolerância, mas o meu fígado resolveu reclamar.

Tem sido assim quando dá nesses assuntos. O que é importante ganha vazão intestinal. Alguém dirá: – não generalize! Eu direi: – o vazio é genérico. Tem sido assim no desprazer. Repetimos o ato por mera cordialidade hormonal. Há um sonho para cada um, e nele um sonho pisado por cada um. O que nos une é tido como o que separa. É preciso ser eterno pra caramba ainda que a eternidade acabe na terça-feira. Às sombras dos pinheiros congelarão as nossas horas, e nada lá há ou haverá para o vão consumo sórdido. Não dá. Nem há sonho se o que roga é viver. Quando alguém ensina que sonho é teoria e vida é a prática: não se alfabetiza ninguém, apenas se funcionaliza, apenas ignora o fato de que a práxis é tudo junto e caminhando.

Fui cortar o cabelo, melhor assim. Entraram uns cinco ou seis jovens, meninos, todos preocupadíssimos com o tom das mechas ou com o cair da franja. Pensei, ali sentado e envolvido pela capa e de olho no espelho que reflete o salão inteiro, pensei em perguntar sobre a intolerância. Só haverá alguém mais tolo do que eu se não for eu o tolo entre todos, pensaria o tolo. Não possuo franja e nem faço mechas. E nem preciso ser jovem para perceber – talvez de vez – que as perguntas que os jovens fazem serão sempre as respostas que jamais tivemos. E sempre nos incomodará essa fatalidade. Sempre seremos sempre, e a juventude será sempre jovem.

Intolerância a minha me preocupar tanto com a realidade.