A Condenação de Judas

"Diz-me com quem andas e dir-te-ei (...) quem és.
Pois é: Judas andava com Cristo. Cristo andava com Judas."
Millôr Fernandes

 
Era o ano 33 DC, domingo de Páscoa. Judas despertou de um sono estranho, com dores por todo o corpo. Tateando no escuro, percebeu as escarpas à sua volta e sentiu a corda ainda lhe apertando a garganta. Livrou-se dela, enquanto as lembranças vinham surgindo, angustiantes, cada pequeno detalhe dos últimos dias a atormentá-lo.
Uma luz surgiu e, dela, um homem que o saudou, efusivo:
- Ah! Enfim, acordou!!
Ele, meio confuso:
- Acordei? Mas...
- Ah! Sim, sim! - adivinhando - Está mortinho da Silva. Sou Advocael. Seu anjo de defesa.
- Anjo? Então estou no céu?
- E você acha que só tem anjo no céu? Esqueceu quem é Lúcifer?
- Então, onde estamos?
- No purgatório.
- Mas, eu devia estar no inferno!! Depois de trair meu senhor...
- Ah! Isso foi a sua salvação. Sem você, as escrituras não se realizariam e a imagem da Cruz jamais se tornaria o símbolo do sacrifício Cristão.
- Então, eu vou para o céu?
- Infelizmente, não. Você cometeu a tolice de se matar. Para este pecado não há perdão.
- Mas, minha consciência me torturava.
- Eu entendo. Mas, não há perdão.
- Então, estou mesmo condenado?
- Ainda não. Minha missão é salvar sua alma.
- Como?
- Vejamos a coisa desta forma: num ato de desespero diante de tamanha culpa, você lançou fora o dinheiro e se matou, certo?
- Oh, Pai! Sim!
- Se, ao contrário, tivesse superado a culpa...
- Sim?
- Teria aproveitado o dinheiro, sido feliz... E, depois de morto, seguiria direto para o paraíso.
- É?
- Neste caso, seu pecado não receberia nenhuma punição. Que tipo de exemplo a humanidade levaria disso?
- Que o crime compensa?
- Entendeu a importância do seu gesto? Por seu exemplo, ninguém será mais capaz de trair, matar...
- Sim!
- Mas, precisamos ter certeza de que a estratégia funcionou. Vamos esperar dois mil anos.
- Dois mil anos??
- Pouco tempo, eu sei. Mas precisamos ter fé na humanidade.
- Mas...
- Se, nesse intervalo, o seu exemplo fizer mesmo diferença, se a humanidade evoluir no caminho do bem, você pode ir para o andar de cima. Caso contrário...
Páscoa de 2014. O prazo está acabando.
E o inferno está em festa, à espera do hóspede ilustre.

 
Texto publicado no Jornal Alô Brasília de 18/04/2014, reeditado do texto homônimo publicado neste Recanto das Letras em 01/04/2010.