Memórias de um Doutor

Era fim de inverno e em plena segunda grande guerra quando vim a este mundo. Nasci com a ajuda de uma parteira, numa casa simples do campo, rodeado pelos irmãos curiosos para ver a quem eu tinha puxado. No quarto pequeno, iluminado por dois lampiões de querosene, foram testemunhas o crucifixo e o quadro pintado de meus avôs, que ficavam numa parede de “pau a pique” sob o telhado de barro caseiro.

Meu pai, homem talhado pela vida, ensinou as tarefas rotineiras com austeridade e retidão. Aprendi desde cedo os "ofícios" de ordenhar vaca, carpir mato da roça, buscar água na cisterna... - Mas não pode "atrapaiá" os estudos - dizia ele! na escola que ficava no sítio vizinho. Lá estudei até o quarto ano do grupo e se quisesse mais, partia-se para a vila no dorso de uma mula. Como dizia minha mãe: "...pra um dia se tornar “Dotô”!

E foi o que fiz...

Acordava todo dia as quatro da manhã, com sol, chuva, frio ou calor. No caminho, vez por outra o perigo dava as caras: cobra, boiada, onça pintada e assombração já me arrepiaram os cabelos. Mas quando voltava, não tinha choro: engolia a marmita e corria para o campo ajudar o pai pro sustento não faltar.

A noite, depois da lição e da reza, eu contava a minha mãe as dificuldades e os apuros que eu passava. Pacientemente ela ouvia e me acalmava, dizendo que todo sacrifício um dia é recompensado. Entre um e outro cafuné, em prosa ou cantiga, falava que o suor derramado pela procura do sucesso jamais desampara quem o derrama.

E era assim que eu dormia...

O tempo foi passando e finalmente chegou o momento do exame de ingresso para o curso superior. Entre os que me rodeavam poucos imaginavam que eu pudesse conquistar uma vaga tão cobiçada numa Universidade Federal. Mas não os meus pais, que souberam todo o tempo da minha capacidade e onde eu poderia chegar.

E foi assim que eu passei... com louvor!

Nem houve tempo para comemorações, pois as dificuldades apareceram com a mudança à cidade grande. Arrumei um emprego de garçom para custear os estudos, e entre um e outro cliente eu colocava em dia o que aprendia na faculdade. Nessa rotina, já não podia viajar ao sítio: a distância era longa e meu tempo e recursos eram escassos. Com persistência resisti aos duros golpes da vida: da mera saudade do meu canto lá em casa até a pior fatalidade que podia acontecer.

E eu perdi a minha mãe!

Caí e levantei muitas vezes. Mas consegui me tornar, da maneira que eu sonhei desde os tempos de menino, um Cirurgião Dentista! Meu velho pai soube da notícia quando ainda empunhava sua enxada no meio da roça Quem ali estava presenciou um dos seus raros sorrisos no canto da boca, seguido de um olhar aos céus e um murmúrio qualquer...

Retornei à velha casa, com o diploma nas mãos. A família correu ao meu encontro pra um abraço caloroso e pra ver aquele pedaço de papel, que tanto esforço consumiu. Jogaram-me ao alto e festejaram a conquista, que ali era de todos. Em meio a tanta alegria, corri para meu quarto pra matar a saudade do meu canto.

Lá encontrei meu pai sentado, na mesma cama onde nasci. Dos seus olhos uma lágrima corria enquanto ele contava à minha mãe, em prece, que o caçula era um doutor!

( À memória do meu amado e saudoso Doutor...)

Danilo Rodrigues de Castro
Enviado por Danilo Rodrigues de Castro em 03/04/2014
Reeditado em 04/04/2014
Código do texto: T4754579
Classificação de conteúdo: seguro