Deitando e rolando com o cronista
Depois de um longo estirão suburbano atrás de grana, goró e comida, como veio a contar-me mais tarde, o maltrapilho pegou finalmente a rua Domingos Lopes, na altura do largo do Campinho, e seguiu em direção à estação de trem de Madureira, alquebrado pelo infeliz acaso de um mau começo de expediente ao ar livre.
Mas no meio do caminho, passado o obscuro rio Feliz, tinha uma praça.
Resolveu parar, demorar-se um instante naquele recanto cheio de árvores, e sentou-se no banco de pedra onde este cronista folheava em sossego o último romance de Sophie H. Prudémil, Tour de golémie à Prague chez les rabins de feu, um chute no ovo, sobretudo nestes tempos de aquecimento global.
O maltrapilho não se virou para o meu lado. Olhava à sua frente, soletrando com dificuldade os dizeres de uma placa ali perto, fincada no meio de um grande cercado de relva com uma gangorra, um balanço e um escorrega. Advertia a placa: CUIDADO! CRIANÇAS BRINCANDO.
Com o canto do olho, para não animar o recém-chegado a puxar conversa comigo, percebi-lhe um ponto de interrogação no entrecenho e um sorriso matreiro nos lábios. Ele também dera um jeito de observar-me à socapa, se me permitem, e disse então, ocioso, como para ninguém: “Mas não há criança alguma brincando.” Nisso o gaiato tinha toda a razão contra o alerta em letras garrafais no microparque, a razão da objetividade, além da sorte de não ter Nelson Rodrigues por perto em dia de derrota do Fluminense. Tinha a mim, que ele queria capturar com a piada.
Não deu outra.
Houve entre nós uma troca inteligente de sorrisos, um comentário mais forte, por parte dele, contra os redatores de placas da prefeitura, uma lamentação em duas vozes quanto à falta de grana geral, e logo me vi despojado de dois cigarros e cinco reais. Como não tenho o hábito de ir à praça do Patriarca, fiquei me perguntando se ele não fazia isso todos os dias, com outros patinhos. Azar. Se minha suspeita procede, o bom homem mostrou classe. Sequer escondeu o destino que daria à minha pequena contribuição: uma média com pão com manteiga, uns três cigarros a varejo e — aqui ainda hesitou um pouco — uma caninha para rebater o desjejum. Vai fundo, meu chapa.
Estou acostumado a cair nessas conversas.
Não faz quinze dias dava umas voltas em Marechal Hermes, quando cruzo com um rapaz visivelmente apressado, botando a alma pela boca. Sigo o meu caminho, mas ele me chama: “Meu senhor, preciso de uma informação. Indo por esta rua dá para chegar à Taquara?” “A pé?!”, indaguei, assombrado, pois ele parecia mesmo embalado em sua marcha. E fiz questão de acrescentar: “Daqui à Taquara são trinta ou quarenta minutos em dois ônibus.” Ele caprichou: “Mas hoje tem que ser a pé. Eu estava com fome e gastei o que tinha num pastel com caldo de cana.” Nem me pediu nada. Imediatamente tirei dez reais do bolso, indiquei-lhe os ônibus que devia pegar e ainda sugeri que fizesse outro lanche quando chegasse ao destino. Minha boa ação do dia, está-se vendo.
À noite, eu conversava com o Zé Peru e o Águia Negra na porta do Fred’s Burger, quando vejo o meu bota-de-sete-léguas no adro da igreja católica, quase em farrapos, fingindo-se de mudo e atoleimado para sensibilizar o pessoal que saía da missa. Rosnava qualquer coisa para uma ou outra senhora, e estendia a mão.
Que fazer? Deixei pra lá. Não ia cortar o barato do grande artista. Ele que ficasse rico depois dessa trabalheira toda.
[20.32007]
Depois de um longo estirão suburbano atrás de grana, goró e comida, como veio a contar-me mais tarde, o maltrapilho pegou finalmente a rua Domingos Lopes, na altura do largo do Campinho, e seguiu em direção à estação de trem de Madureira, alquebrado pelo infeliz acaso de um mau começo de expediente ao ar livre.
Mas no meio do caminho, passado o obscuro rio Feliz, tinha uma praça.
Resolveu parar, demorar-se um instante naquele recanto cheio de árvores, e sentou-se no banco de pedra onde este cronista folheava em sossego o último romance de Sophie H. Prudémil, Tour de golémie à Prague chez les rabins de feu, um chute no ovo, sobretudo nestes tempos de aquecimento global.
O maltrapilho não se virou para o meu lado. Olhava à sua frente, soletrando com dificuldade os dizeres de uma placa ali perto, fincada no meio de um grande cercado de relva com uma gangorra, um balanço e um escorrega. Advertia a placa: CUIDADO! CRIANÇAS BRINCANDO.
Com o canto do olho, para não animar o recém-chegado a puxar conversa comigo, percebi-lhe um ponto de interrogação no entrecenho e um sorriso matreiro nos lábios. Ele também dera um jeito de observar-me à socapa, se me permitem, e disse então, ocioso, como para ninguém: “Mas não há criança alguma brincando.” Nisso o gaiato tinha toda a razão contra o alerta em letras garrafais no microparque, a razão da objetividade, além da sorte de não ter Nelson Rodrigues por perto em dia de derrota do Fluminense. Tinha a mim, que ele queria capturar com a piada.
Não deu outra.
Houve entre nós uma troca inteligente de sorrisos, um comentário mais forte, por parte dele, contra os redatores de placas da prefeitura, uma lamentação em duas vozes quanto à falta de grana geral, e logo me vi despojado de dois cigarros e cinco reais. Como não tenho o hábito de ir à praça do Patriarca, fiquei me perguntando se ele não fazia isso todos os dias, com outros patinhos. Azar. Se minha suspeita procede, o bom homem mostrou classe. Sequer escondeu o destino que daria à minha pequena contribuição: uma média com pão com manteiga, uns três cigarros a varejo e — aqui ainda hesitou um pouco — uma caninha para rebater o desjejum. Vai fundo, meu chapa.
Estou acostumado a cair nessas conversas.
Não faz quinze dias dava umas voltas em Marechal Hermes, quando cruzo com um rapaz visivelmente apressado, botando a alma pela boca. Sigo o meu caminho, mas ele me chama: “Meu senhor, preciso de uma informação. Indo por esta rua dá para chegar à Taquara?” “A pé?!”, indaguei, assombrado, pois ele parecia mesmo embalado em sua marcha. E fiz questão de acrescentar: “Daqui à Taquara são trinta ou quarenta minutos em dois ônibus.” Ele caprichou: “Mas hoje tem que ser a pé. Eu estava com fome e gastei o que tinha num pastel com caldo de cana.” Nem me pediu nada. Imediatamente tirei dez reais do bolso, indiquei-lhe os ônibus que devia pegar e ainda sugeri que fizesse outro lanche quando chegasse ao destino. Minha boa ação do dia, está-se vendo.
À noite, eu conversava com o Zé Peru e o Águia Negra na porta do Fred’s Burger, quando vejo o meu bota-de-sete-léguas no adro da igreja católica, quase em farrapos, fingindo-se de mudo e atoleimado para sensibilizar o pessoal que saía da missa. Rosnava qualquer coisa para uma ou outra senhora, e estendia a mão.
Que fazer? Deixei pra lá. Não ia cortar o barato do grande artista. Ele que ficasse rico depois dessa trabalheira toda.
[20.32007]