Como queres queimar a brasa que acendeste?
(uma versão do CADAR)
Foram 14 meses que pareceram 14 anos. Eram dez no dia dez de Junho de 1974. Eram uma centena no verão de 1975. Fundaram a maior associação de jovens que a Ribeira Grande jamais conhecera.
No verão quente de 1975, queimaram-lhes actas, estatutos, livro de sócios e outros papéis. Pouco ou nada chegou às páginas dos jornais. Ficou, porém, a memória do que recordam. De memória, com o desgaste da memória, conta-se uma versão de parte desta história quase esquecida.
Na ruptura com o passado daquele presente, a única benção oficial que consentiram, foi a sua. Os estatutos foram feitos por um deles e foram discutidos e aprovados em assembleias na sua primeira sede da rua da Praça n.º 27-29.
A ideia nasceu, mal nasceu o 25 de Abril. Foi crescendo no fogo de duas manifestações: uma, contra uma directiva do MFA de sanear o Presidente da Câmara, engenheiro Fernando Monteiro, que lhes pareceu absurda; outra, a celebração do primeiro dia um de Maio, na qual, o Dr. Manuel Barbosa discursou perante uma pequena multidão, primeiro, nas escadarias da Igreja da Matriz, logo de seguida, na escadaria dos Paços do Concelho. Ou seria o contrário?
Crescida a ideia, por ser 10 de Junho, no dia 10 de Junho, querendo passar do eu ao nós, decidiu servi-la a outros nove. Lembra-se de ter acontecido num dia de sol, depois do almoço habitual de carne assada com batata. Não se lembrava em que dia calhou, mas foi ao google e viu que foi numa segunda-feira.
Foi de casa ao Jardim do Município lançar a rede e lançou o Luís Teixeira, o Guilherme Rocha, o Francisco Xavier, o Duarte Maré, o Duarte Morgado, o José Alberto Ventura, o Rui Abadesso, o Ricardo Peixoto. Já não se lembra do nome do décimo companheiro. O Luís Teixeira diz-lhe que pode ser o José António Medeiros. Lembra-se de que, refeitos da surpresa inicial, todos aceitaram. A primeira reunião foi logo de seguida, na rua, na do Botelho, no lado de fora do lar Feminino, a escassos metros da sua casa: criou-se uma CPA (Comissão Pró-Associativa)
Quem eram estes dez? Usavam cabelos compridos, suíças com patilhas largas, calças à boca-de-sino, sapatos com tacão alto e adoravam ouvir o I Can Get no Satisfaction e Zeca Afonso. Eram todos residentes na Matriz da Ribeira Grande. O mais velho, pouco passava dos vinte anos e o mais novo dos dezasseis. Quatro haviam sido recentemente seminaristas. Seis eram estudantes. Cinco do Liceu e um da Escola Industrial. Três trabalhavam já. Eram filhos de mestres, de moleiros, de funcionários públicos e de comerciantes. Parte, pertencera a movimentos católicos da índole da JOC.
Admiravam e criticavam o Círculo de Amigos da Ribeira Grande. Seguiram-lhe o exemplo, mas opuseram-se ao seu elitismo. Abriram-se a toda a comunidade. Sobretudo, aos da sua idade. As suas ideias eram libertárias: os cargos de chefia rodavam semanalmente. Todos foram presidente e todos foram contínuos. Deviam ao espírito da Cooperativa Sextante. Seguiram os passos da geração mais velha, tocada pelo toque de Midas do engenheiro Monteiro.
Unia-lhes um inabalável amor telúrico à terra. Achavam que podiam refazer a Ribeira Grande. Foi cadinho de cidadania. Juntou o lado lunar e o lado solar da cidadania.
Pouco tempo depois da reunião fundadora, a memória não é segura, lembra-se apenas de que não chovia nem fazia frio. Lembra-se de um sol tímido. Terminado um encontro de jovens católicos, que ocorrera na sala da Liga Católica, ao descer a escadaria da Matriz, aproveitou o rescaldo apostólico do conclave e lançou de novo, nova rede, desta vez a um grupo de raparigas: ‘vocês querem pôr em prática o que pregou o padre Costa Freitas?’ A rede apanhou, entre outras, a Gaby e a Lusa.
O uso do espaço da sede, na rua da Praça, n.º 27 e 29, foi-lhes permitido pelo saudoso Dr. Sampaio Rodrigues. Sampaio Rodrigues, um velho democrata liberal, urbano de fina ironia mansa, calmo e inteligente, fora nomeado recentemente Presidente da Câmara. Com os parcos recursos da autarquia, apoiou-os. Tornou-lhes seu parceiro. A sua amizade perdurou até à morte, honrando-nos com um ‘és o único amigo da tua idade que tenho.’ Disse-nos um dia.
O nome CADAR, Centro de Apoio ao Desporto Arte e Recreio, soava bem. Foi-lhe sugerido pelo engenheiro Monteiro. Lembra-se de que foi à saída da sua casa, na rua de São Francisco, já estava a pôr a mão à porta da rua para sair. Aliás, os laços de admiração entre ele e o engenheiro, foram a tal ponto estreitos, que, este, mais tarde, encerrado já o CADAR, o convidaria para dinamizar uma nova associação de jovens que pouco depois tomaria o nome de Pontilha.
Os membros do CADAR lançaram mãos piamente utópicas à cultura e ao desporto. Atiraram-se resolutos ao desporto, promovendo o que os horizontes dos seus sonhos sonhavam: provas de atletismo, torneios de futebol, festivais de natação, campeonatos de pingue-pongue, de cartas, de xadrez.
Na cultura, reinventaram saudáveis ousadias: festividades natalícias, com presépio público e presépio do Senhor Prior feito de modo tão fora do habitual (deram folga ao Menino Jesus e contrataram imagens de meninos famélicos), emissões de rádio, festivais de música, animação no verão, sala de leitura de imprensa. Graças ao nosso amigo de sempre, Sr. Humberto Peixoto, pai do Ricardo Peixoto, tivemos sempre a aparelhagem sonora.
Onde estarão hoje, 40 anos depois, aqueles dez? Três emigraram para o Canada, um já faleceu e os outros seis, andam por aqui. Aqui, porque não podes queimar a brasa do que acendeste.
Mário Moura
19 de Março de 2014