No tempo em que a chuva era boa
Chegava o verão: chuva, fim dos agasalhos, dos cobertores, calor, piscina nos fins de semana, conversas até mais tarde na calçada, brincadeiras de pique, de maré, de contar histórias de fantasmas.
No fundo, verão poderia ser em qualquer época do ano, mas, em dezembro, as aulas terminavam, chegavam as férias e o Natal.
Recebíamos presentes só no dia 25. Havia sempre uma surpresa. Dormíamos à noite do dia 24, convencidos de que só ganharíamos aquela roupa que desembrulhávamos após a Missa do Galo que assistíamos na igreja, que ficava pertinho de casa. "- Coisa mais sem graça: ganhar roupas de Natal!" Mas no dia 25, havia uma cadeira perto da cama e lá estavam os presentes que não imaginávamos ganhar: a boneca, o trator amarelo, o jogo da Estrela que passava no comercial do programa do Capitão Asa.
Era só trocar a roupa de dormir, lavar o rosto e sair para a rua, ainda úmida da chuva da madrugada, para mostrar os brinquedos aos vizinhos, que também exibiam os seus. Era um show!
As manhãs de Natal não tinham neve e nem trenó como nos filmes da TV, mas tinha uma chuva fininha e muita satisfação.
Os brinquedos eram muito interessantes até o Ano Novo, depois começavam os planos para as férias. Onde? Geralmente no sítio, na roça de algum parente. Aí sim , poderíamos dizer que as férias haviam começado.
Mas começavam também as chuvas que duravam semanas. Lentas garoas intermináveis.
Dormia-se ouvindo a chuva cantar no telhado, acordava-se ouvindo o barulho das goteiras, misturados ao canto preguiçoso de um galo.
Ganhávamos o espaço: Cavalo selado, e a chuva caindo. Subir no pé de manga, e a chuva lá, sem dar trégua. Caçar passarinho: chuva; pescar lambari: chuva, banho no rio: chuva; pular nas poças de lama do curral: chuva; catar goiaba no pasto; chuva.
Chegava-se em casa molhado até nos ossos. Aí vinha o banho morno de bacia, paletó de flanela, café com leite quentinho na caneca esmaltada, com o corpo coladinho ao fogão à lenha, pra tirar a friagem.
A noite chegava novamente e a cama quentinha nos esperava. Por debaixo da colcha de retalhos e à luz da lamparina que projetava na parede caiada, sombras gigantescas que atiçavam nossa imaginação, viajávamos na leitura das aventuras do Fantasma e de sua noiva Diana. Que vontade de ter um cão como o Capeto e um anel com a marca da caveira!...
Enquanto a chuva cantarolava lá fora, a leitura saia das selvas do Fantasma e nos levava à "Ilha Misteriosa" ou dávamos "Á Volta ao Mundo em 80 Dias".
Planejávamos o dia seguinte sonolentos e os sonhos misturavam nossa realidade ao mundo de nossos heróis.
A chuva não dava nenhuma trégua, mesmo depois de desenharmos o Sol no terreiro da cozinha ou colocar cascas de ovos na cerca, apelando para Santa Clara por uma estiada.
O jeito, às vezes, era ficar no paiol pulando na palha de café ou debulhando milho em uma engenhoca de "alta tecnologia" ( pelo menos, assim imaginávamos), movida à manivela.
Na cozinha de chão batido, a briga era por outra maravilha tecnológica : a máquina de moer café. Era confortável o barulhinho dos grãos de café passando pelas navalhas já gastas e o pratinho se encher de um pó fino e cheiroso...
À tardinha, jogar belisca no assoalho da sala, olhando pelas frestas, as galinhas que se escondiam da chuva debaixo do assoalho enquanto a pipoca que arrebentava na cozinha, enchia a casa de um cheiro confortável que ainda consigo sentir nos dias chuvosos.
Fim de férias, fim das chuvas!
A riqueza da simplicidade da roça ficaria na lembrança: o cheiro do mato molhado, os pés descalços na lama fininha, os animais encolhidinhos na chuva, o barulho da goteira, a fumaça na chaminé do fogão, o ferro à brasa, o banho nas águas frias do rio...
Riquezas simples ficavam no entanto congeladas no tempo até as próximas férias ou, até ... nos dias de hoje.
Lembranças guardadas em um cantinho da memória que surgem quando a chuva vem e se esquece de ir embora. Mansa, sonolenta e saudosa...
Angela Imaculada