A RETICÊNCIA DO RETRATO

Tirou dois pacotes de fotografias. Um estava no computador, o outro na caixa de memórias. O seu nome era qualquer coisa Leme, tinha perfil cibernético nas várias mídias e reproduzia uma vida ao vivo, mas conquistada a prazo. Jurou que havia para de si meia dúzia de desvantagens além do tempo perdido em encontrar apartamento com duas garagens, queria reconhecimento de quem era, implorou para o destino atrasar-lhe algumas feições, sentiu-se moço como possivelmente nada de mais antiquado existe, pensa até procurar algum consórcio para cirurgias plásticas. Refinanciou o carro: preteriu o conforto: é a vez da esportividade. Matriculou-se na academia, anuncia numa rede social que vai treinar e desfia frango para acompanhar os ovos no jantar. Tingiu os cabelos. Todos. Folheou a correia do relógio, quis ser notado como alguém de pulso, certamente. Recusa convites perturbadores, prefere conhecer-se na agitação. Nunca se cobrou de paciência alguma para ler os jornais, mas quando convém tem-se acostumado a exibir opinião nos assuntos da política, na arte, no futuro, mas o seu tema nato é comportamento. Sabe determinar como cada qual pensa ou age apenas no primeiro contato visual. Alvo favorito? As roupas curtas, os gestos íntimos, qualquer testemunho de liberdade corporal. Pois bem, o corpo é uma obsessão para ele, mais ainda agora, pois que juntou outro transtorno: a necessidade em estar jovem. E nas fotografias havia revelações de muitas possibilidades, às quais se dirá tratar de infortúnios ou prerrogativas, embora exista algum olhar mais atento e falar-se-á, então, em indecisão ou covardia. Aí mora o insidioso arrependimento. Esse homem, alguma coisa Leme, está impulsionado pela vontade de Schopenhauer e sabe que a sua verdade jamais é aquela que lhe dirão, mas sim é preferível manter o acordo entre a aparência e a existência, portanto, o não feito estimula, mas as impossibilidades argumentam. Olhou para os retratos sem manter distância, recolocou-se em alguns detalhes nunca vividos e definhou passo a passo um destino. Pela terceira vez na vida.

Quando da ex-mulher bateu-lhe na porta o advogado, soube de vez que não ocorreriam jamais ex-despesas, já que não existem ex-filhos. Casaram-se cedo, ele por coração, ela por amor. Não suportaram reconhecer na adolescência dos filhos as denúncias de suas imperfeições, desfizeram a relação como quem abastece a vida de inconveniências. Às vezes é tão simples supor que a separação é apenas uma solução matemática. Mas o caminho da insatisfação é decidir. Não há outro porém.

Nas fotografias havia um pouco de coisas novas, mas o que lhe interessava a procura eram as moças dos desejos. Não precisava de muita coisa, talvez um decote, uma saia, um biquíni. Um selinho na amiga, uma mão boba, uma saliência no gesto. Talvez. Havia coleções de moças, recortadas de revistas, fotografadas a esmo, retiradas da internet. Na caixa ou no computador. Cobiçá-las sempre foi um aperitivo na vida de (...) Leme. Considerava-se legítimo filatelista ao guardar os retratos como quem cuidasse da esperança dos povos. Colecionador minuciosamente dedicado. Loiras, morenas, ruivas e mulatas, preferências agora somadas às asiáticas e também às despojadas. Tatuagens e piercings passaram combinar com as fantasias nunca realizadas. As desconhecidas – maioria – recebiam nome e data do descobrimento. Já para as moças famosas há um espaço reservado. Obcecara-se agora em encontrar numa delas a formosa parceira. Ou em várias a formosa realização.

Ensinara aos filhos que o pervertido não tem moral, lição de casa tomada desde cedo. Vive no apartamento alugado e decorado à magazine, recebe a visita das crianças normalmente, embora isso funcione melhor aos finais de semana. Por quê? Numa terça-feira qualquer, o menino chegou de surpresa e topou com várias das fotografias: no computador e na caixa. Sugeriu ser engano. Preferiu ter no pai a figura que ensina: “perversão é imoral”. O menino tem moral. Engoliu seco, soltou um “caraca” gutural e partiu após escrever o recado: “pai, fechei os arquivos, guardei a caixa. Alguém deixou umas fotos aí. Não sei se alguém deveria vê-las, mas... Beijos, te amo”. Alguma coisa Leme pensa até o momento no lapso, guarda vergonha ao falar com os filhos e até tem recusado atender algumas de suas ligações. Pegou novamente os dois pacotes de fotografia. Um deles deixou a caixa vazia ao ser passado no triturador de papéis. O outro recebeu delete. Simples assim. Mas nem tanto: o homem passou uma tarde inteira na cama ao recordar-se com arrependimento. De o filho tê-las descoberto ou do fim delas? Eram, algumas delas, moças que poderiam ter dado em alguma coisa, algum relacionamento, alguma aventura, não fosse ele tão devagar com certas coisas. Pois bem, nem havia festa preparada pelo destino, tampouco haverá. Fato que sempre lhe é sincero: continua a postar a realidade improvisada nas redes sociais, as possibilidades joviais, a vida demudada; afinal, trata-se de uma pessoa comum. Tanto quanto o receio, surgido desde então, em olhar-se ao espelho. Por algum motivo a figura ali refletida lhe perdeu a graça.

Pelo sim ou pelo não, também tem preferido encontros familiares em lugares públicos: restaurantes, parques, cinema. E faz questão de nunca aparecer nas fotografias. Garante que a imagem ali parada não revela o que, de fato, sente.