17
Acordar de novo com a mesma música estridente que lembra o começar de mais um dia. O dia está cinzento, cheio de nuvens que não deixam ver que horas são. Está frio, está sempre frio. O ritual da manhã começa, cara, cabelo, corpo e dentes. Ingerir algo para enganar o estômago. Sair de carro a correr, acelerar pela esquerda, por as mudanças ao contrário, parar nos amarelos, dar passagem a tudo e todos, ao fim ao cabo estamos todos num país civilizado.
Chegar ao local onde passamos 8 horas do dia, nem mais um minuto. Abre pontualmente as 9 e fecha sem ressentimentos as 17. É um dever que todos fazem, uma obrigação que todos impõem. Sorrir de forma aberta, não mostrar o que nos vai na alma. O ambiente é de uma indiferença mascarada. Cumprimentar o mais estridente possível para não destoar, para não correr o risco de parecer humano.
Seguir as directrizes, guidelines, regras e mandamentos. Fazer de pessoas nossos instrumentos, mecanizar o discurso, estender a mão num movimento pendular, metronomizado. Questionar sem pudor, penetrar no outro sem incomodo, aconselhar e prevenir o que outros já nos treinaram.
A meio do dia, sem centelha de luz vista, sem sentir o calor do sol, fechado numa esquina de cuidados paliativos, para-se para ganhar fôlego. Engole-se um pedaço de pão com alface e maionese com uma fatia de fiambre transgénico, produzido a léguas de distância. Abre-se a lata de um refrigerante e finge-se querer saber do próximo. Ensaiam-se conversas com modelo predefinido sem ouvir a resposta. Compassadamente faz-se um esgar de um sorriso e o tempo passa.
Rigorosamente se recomeça a horas, como se de uma linha de montagem se tratasse. Executa-se a arte que nos foi transmitida, numa cadência louca sem lugar para falhas. Toca o sino e são 17. Verifica-se o desempenho, traduzido em números e estatísticas. Deseja-se bom resto de dia apressadamente como manda o guião em uníssono com os demais.
Conduz-se de volta a casa, pela direita ou esquerda, trava-se a fundo e insulta-se alguém. Exaspera-se no sinal vermelho, acelera-se a fundo pedindo desculpa à pessoa na passadeira. Sobe-se as escadas a correr, carrega-se no botão do elevador 7 vezes. Naqueles 10 segundos ascendentes, imagina-se o calor do lar, o cheiro de comida cozinhada, o som da harmoniosa música com ditongos. Abre-se a porta e vê-se um sorriso sincero, um abraço quente e o cheiro familiar. Rimo-nos com vontade, comentamos vicissitudes e trivialidades, amamo-nos em silêncio. O coração fica cheio, o tempo pára. Comunicamos com quem deixámos para trás. Recebemos alento, matamos saudades. Naquele espaço somos nós, fundamos a nossa embaixada, é o nosso abrigo, o nosso lar. Recarregamos energias e vontade. Amanhã é outro dia, amanhã vamos sobreviver até as 17