UM TREM CARREGADO DE LEMBRANÇAS
Se um trem mágico, simbólico, andando devagar, a uma velocidade de apenas um quilômetro por dia, recolhendo lembranças minhas em cada estação (isto é, a cada dia vivido), já teria recolhido mais de trinta e duas mil lembranças, pois, multiplicando-se oitenta e nove anos pelo número de dias de cada ano, chega-se a esse número.
Do meu conhecimento, os escritores que escreveram suas memórias infantis foram Gilberto Amado, sergipano que viveu 72 anos e escreveu “Memórias da Minha Infância”; José Lins do Rego, paraibano, publicou-as em “Menino de Engenho”, mas não teve tempo para escrever suas memórias da velhice, pois faleceu aos 56 anos, e Graciliano Ramos, alagoano, que escreveu “Infância”, e aos 69 anos partiu para outra esfera. Vinicius de Moraes, carioca, falou sobre a sua infância em vários dos seus poemas, mas viveu apenas 67 anos. Há um livro, que não conheço, de Marcos Freitas, “Os Intelectuais na História da Infância”. Sei que o interesse do leitor depende da qualidade das lembranças, do seu romantismo e do estilo de quem as narra. Se os mencionados e ilustres escritores, de renome nacional, tivessem escrito, qualquer deles, as respectivas biografias, poderiam ter sido best-sellers nacionais, mas, de memórias, limitaram-se a escrever as infantis. Eu, na simplicidade da minha vida e como escritor provinciano, considerando o bem maior número de anos vividos, teria uma história de vida certamente não tão significativa, porém bem mais extensa, para contar.
Portanto, com 89 anos, para narrar todas as lembranças da minha vida, a partir da infância, passando pelos cinco períodos em que a divide o filósofo francês Pierre Proudhon (1809-1865) - “A vida do homem divide-se em cinco períodos: infância, adolescência, mocidade, virilidade e velhice.” - tenho muitas recordações acumuladas, que, se fossem todas interessantes, dariam para escrever um alentado volume. Além das inumeráveis da infância e da adolescência, parte da quais já contei em “Minhas Lembranças de Mossoró” (1998) e em “Mossoró – Outras Lembranças e Um Pouco de História” (2002), tenho as da mocidade, da vida adulta e as já da velhice, se se considerar esta como começando aos setenta.
Pois é, além das lembranças lúdicas da infância, teria muito o que contar dos meus cinco anos como estudante do Ginásio Diocesano Santa Luzia, dos 13 aos 18 anos, na convivência com centenas de colegas; do meu período de quase um ano no Tiro de Guerra 42; dos meus quase trinta anos na agência do Banco do Brasil, em Mossoró e dos dois e meio em Caruaru, e, finalmente, dos meus já trinta e sete anos de aposentado.
Não sei como existem pessoas que não sentem saudades, vivem apenas o presente. Tais pessoas não podem ter alma. Eu sempre senti, e muita, e com elas alimento a minha alma.
Não digo como Edgard Allan Poe: “Não fui, na infância, como os outros/e nunca vi como os outros viam./Minhas paixões eu não podia/ tirar das fontes iguais às deles/ e era outro o canto que acordava/ o coração de alegria./ Tudo o que amei, amei sozinho”. Poe perdeu o pai logo cedo e ficou órfão de mãe pouco depois. Seu estilo era considerado macabro, daí o pessimismo dos versos transcritos.
Minha infância e adolescência posso dizer que foi comum, mas foram felizes, o que me autoriza a dizer, como Carlos Drummond de Andrade:
“E as memórias escorrem do pescoço,
do paletó, da guerra, do arco-íris;
enroscam-se no sono e te perseguem,
à busca de pupila que as reflita.
E depois das memórias vem o tempo
trazer novo sortimento de memórias,
até que, fatigado, te recuses
e não saibas se a vida é ou foi".
Em mim as memórias, vindas do coração, escorrem pelo pescoço e sinto necessidade de compartilhá-las com os meus contemporâneos e conterrâneos, estes para que saibam como foi a cidade em que hoje tudo mudou, havendo se transformado, ante o que foi no meu tempo, quase numa megalópole.
Diz Machado de Assis: “Eu não esqueci coisas que só vi em menino.” Pois eu não esqueci não só as que vi em menino, nem as que vi na adolescência, nem na mocidade, nem na maturidade: elas explodem em mim. Daí eu recorrer à imagem de um trem carregado de lembranças e que vai desembarcando em cada estação, isto é, em cada crônica, cada livro que ainda, se Deus permitir, pretendo publicar, pois já estão escritos.
Bem, meu amigo, já é meia noite deste dia 20 de outubro de 2013 e, já estando para nascer um novo dia, vou terminar por aqui.