Corruptivelmente humano

Só lembro de que estava tudo quente, aquecido, um lugar terno, preenchido de algo viscoso, que pode lembrar uma sensação grudenta ou asquerosa para alguns, mas aquilo soava bem, me confortava, era meu reduto. Sentia que tinha um primeiro contato com algo, alguém, alguma coisa, e sei lá, aquele ser me dava a sensação de ser algo, eu me sentia inteira.

Não sei porque tinha algo nos ligando, ah! Deve ser isso que me conforta, que me faz sentir conexão com esse líquido tenro, esse balsamo materno, a que chamam de “bolsa”, mas que, naquele momento eu chamava de lar, mundo, vida. Inocentemente, insistia em sair dali, pensei em avisar que estava ali, mas será que existia alguém, me senti insegura, me encolhi e me chamaram de feto. Ouvi vozes, senti pulsações perto de mim, sons estranhos, que aflição.

Depois de algum tempo, me senti confortável suficientemente para tentar contato com aqueles que me nutriam, chutei, esperei, obtive mais pulsações... Não, ninguém me respondera, que pena, me senti só no mundo, mesmo que algo me dissesse que não.

Passou-se algum tempo, meus pés cresceram, minhas mãos também, estava ficando incomodo morar ali, achava que com mais algum tempo eu iria explodir, até que incrivelmente aquele líquido reconfortante escapara de minhas entranhas, e eu começava a me sentir sufocado, algo brusco ia acontecer comigo, e aconteceu. De repente, e não mais do que de repente sinto algo puxar-me os pés, a mão gélida me puxava para o que parecia ser meu fim, esse se materializa numa atmosfera barulhenta, fria, com pessoas vestidas de verde, olhos arregalados e pulsações muito mais intensas das que se ouvia antes.

Ouvi balbuciar-se coisas como “é uma menina”, “Marília”, “que linda”, que não me lembravam nada, para atormentar-me o tino, ainda fui tomada de uma enxurrada de água gelada, mas o frio arrebatador foi seguido de um frio inquietante que veio como consequência do ato de um desses de verde, cortaram-me o cordão da comida, eu agora, definitivamente estava só nesse fim trágico que chamam de mundo.

Bem, não foi fácil pra mim, foi ridiculamente necessitado de meu amago para que eu tivesse algo para me sustentar, prender-me a esse novo lar, bem maior que a antiga casa, recebi pai e mãe. Foi melhor que tudo o que eu havia visto antes, esses seres me acalentavam de maneira que eu nem sentia falta daquele líquido mais, eu era completa, no meu mundo. Fui aos poucos descobrindo sabores, fazia sinestesias em almoços, experimentava de tudo que esse novo lar me oferecesse.

A pouca idade me alcançou, fui a escola, fiz amiguinhos de classe, no meu aniversário, chamei todos, comemos bolo e tomamos coca cola como de costume, no outro dia tive dor de barriga. Ganhei alguns brinquedos, e várias roupas, ai que porcaria de mundo novo. O presente que mais me chamara atenção foi um ursinho de pelúcia, bicho alergênico que me cativou de primeiro olhar, perto de Campi me sentia bem (sim, eu era criança e feliz e coloquei esse nome no ursinho), completa, preenchida de calor humano, ou sintético, o mundo em que vivo agora é assim.

Mais anos se passaram, começaram a me chamar de adolescente, é na idade entre 16 ou 17 anos que fazem isso, normalmente esse pessoal mais velho é desatualizado, pois eu com 12 anos já era pré-adolescente, enfim, comecei a ir em festas, dialogar com meus amigos da escola, esquecendo aqueles que me irritavam.

Nesse mundo capitalista habitado por humanos tudo é motivo de se gastar dinheiro, ah os americanos, sempre arranjando motivo de gastar, e assim quando completei 15 anos fizeram uma grande festa pra mim, fiquei feliz, pena que estavam meus pais nela, mas tudo isso era compensado com a presença de Sérgio, simplesmente, “o cara”.

Sem entrar em mais detalhes que me causem saudosismo, lembro que aquela noite foi a mais feliz daquela minha vida resumida, eu era popular, era a princesa da noite, e de brinde, consegui que o Sérgio entrasse em minha vida. O namoro foi duradouro, era perfeito enquanto namorávamos, eu me sentia completa, acolhida no novo mundo, a eterna princesa de Serginho, até que a Universidade entrou em minha vida, mas antes dela teve o inferno que chamam de vestibular.

Em linhas gerais meus pais que um dia me amaram diziam que eu não queria nada com a vida, e Sérgio dizia que me amava, resolvi acreditar naquilo que me confortava e... quebrei a cara, senti o frio bater nas entranhas quando vi seu nome no listão e o meu não, estava morta para o mundo familiar.

Passando mais alguns anos me ajeitei, segui rumo certo na vida, ou melhor, entrei na vida, adulta, adúltera, superficial. Agora já era responsável pelas minhas atitudes, já era moça casada, passei por mais um ritual da vida, fui rainha por mais um dia, mas agora eu teria a lua de mel, que pena que durou-me só uma semana, sempre esqueço que sou adulta.

A responsabilidade batia a minha porta, Paulo me pressionava um filho, quem mandou casar-me com um pediatra, bem feito, passei a entender quem fui um dia, já fui chamada de feto, embrião, e hoje sou óvulo, endométrio e vou ter meu próprio feto, se um tal de Deus quiser, aliás nunca fui ligada a religião, embora boto uma fezinha em Deus.

Sai o resultado, minha sina e meu destino estavam traçados, estava grávida, de gemeos, duas cobranças, duas bocas para alimentar, duas vidas em minhas mãos, eu acolhiria fetos, podia sentir a angustia deles em ficar sozinhos ali, até que em 9 meses o médico os socorreria. Nasceram bem, graças a Deus, Eduardo e Débora, hoje, mais conhecidos como minha vida.

O sentimento que Deus me deu foi algo maravilhoso, senti que alguém dependia de mim, e tinha sangue do meu sangue, ou seja, eu derivei alguém, sou fonte de vida, sou mãe. Sempre achei a palavra algo forte demais, por isso choro, me emociono, vivo da carne o tutano, sou leoa de leões novos, sempre arisca a movimentos mais bruscos com minhas crias.

Na minha humilde opinião, fui boa mãe, afinal, todos viraram gente, nem deram para drogados, muito menos para vagabundos, como dizem “honraram meu nome”, acho forte, porque eles são mais que isso, são herdeiros e protagonistas de minha vida. Estava eu feliz, completa, acolhida, acalorada pelos meus herdeiros, minha fortuna, meus filhos, achava eu que Deus não precisava mais intervir por mim, afinal de contas, minha edificação no novo mundo estava sólida e concreta.

Fui ao chão, dei de joelhos no gélido mármore, fiquei vazia, vi como é tão fácil ir de extremo a extremo, morri, quem dera ter morrido. Ele foi quem morreu, não sabia se tinha inveja ou se chorava sua partida, fiquei com o título de viúva, senhoras sempre respeitadas, mas eu não queria isso, queria agora a devassidão de botequins, o calor de becos e o acolhimento de bactérias na carne crua. O frio arrepiou-me a espinha, eu estava realmente só, sem base, sem ursinho, sem pai, sem mãe, sem namorado, sem filhos, não sentia a presença das crianças, que sofriam também, era demais pedir consolo, eu que deveria consolar.

Só clamei aos céus, só chorei, emudeci a voz alegre, juntei as mãos vazias, pedi redenção, tive uma epifania, tudo ao mesmo tempo, queria pulsações ao pé do ouvido, queria cordões umbilicais, amor de filhos, e tudo que recebi em troca foi o novo mundo, chamado solidão, cercado de um líquido gelado, reconfortante assim como o leito materno, era um puro malte, escocês... Cedi a tentação de ser humano, falível.

Gabriel Amorim 15/05/2013

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Gabriel Melo Amorim
Enviado por Gabriel Melo Amorim em 09/10/2013
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