A BOTIJA

No século XVIII. Era um tempo em que tudo andava mal para mim. Por questão de somenos, perdi o emprego e demorava em conseguir outro. Atrasei as prestações do modestíssimo apartamento de terceiro subsolo e este foi à hasta pública, edital publicado no jornal e demais formalidades. Fui ao gerente da Caixa Econômica e expliquei a situação, disse que estava desempregado, as coisas andavam difíceis para meu lado, tivesse um pouco de paciência pelo amor de Deus, não botasse meus filhos na rua. Afinal a Caixa era do governo, tinha um compromisso social, o apoio ao pobre sem teto. Nada de encontrar compreensão, coisa realmente impossível entre os tecnocratas bem remunerados para cuidar dos assuntos públicos que acabam confundindo com os seus próprios, estes prevalecendo sobre aqueles. Ao contrário, com o argumento do fim social da entidade as dificuldades cresceram. Não tinha jeito para o meu caso responderam; Lei é lei e é para ser cumprida. O social é outra coisa, vem depois, e é preciso requerer e informar, apreciar, decidir. Demanda tempo e o tempo agora era de desapropriação e execução do débito. Prazo de preito e recursos esgotados. Corri as sete freguesias e não encontrei emprego qualquer nem solidariedade, nenhum meio de recomeçar a vida. Parecia que minha sorte desandava. Afinal, sem outro meio de vida e sem outro apelo, passei a dirigir um táxi ganhando pelo líquido da produção, isto é, depois do pagamento de combustível, oficina, manutenção, uma comissão sobre o restante. De qualquer modo, fui posto para fora do imóvel e como única tábua de salvação aboletei-me na casa de um cunhado, que morava na mesma cidade. Sofá, esteira no chão, tudo servia. Por uns dias, dizia, até que arrumasse um teto qualquer, um barraco de invasão, alguma coisa assim. Um ônibus cortou o carro pelo meio, escapei por milagre. Lá ia começar tudo de novo e ainda por cima deixei uma encrenca com o dono do táxi que me considerava culpado pelo acidente.

Num desses dias de muitas tribulações, ocorreu-me a visão de um velhinho de longas barbas brancas, olhos cavos, cabelos longos, inteiramente alvos. Vestia um batão semelhante ao dos frades missionários, tinha um cordão de São Francisco amarrado à cintura. Mas logo se desfazia de frade em um anjo de vestes alvas e duas lindas asas de macias penas de garça. Voltava a monge, retornava a anjo. Como se estivesse brincando de transformar-se de santo velho em santo novo, de santo novo em santo velho. Crescia e diminuía, ora parecia triste, ora parecia alegre. Depois de longamente contemplar-me enquanto ia e vinha nas mutações, disse o inesperado visitante:

- Vai à fazenda Lagoa do Papagaio, que pertenceu aos teus antepassados. Chega debaixo da cajazeira que fica na frente da casa velha. Caminha cinco passos para o lado do sol nascente e cava. Há uma botija cheia de moedas de ouro e prata, o bastante para te deixar rico até o fim da vida, por mais longa que seja esta, por mais que luxes, por muito que desperdices. Comprarás muito boi e bode, muitas fazendas e andarás de cavalo e burro, não comprarás carro, não serás da cidade, mas do campo. Vai à meia noite em ponto e cava. Vai só, sem qualquer companheiro. Que ninguém veja e ninguém saiba desse dote. Não te assustes com o que vires e ouvires. Cava de cabeça baixa, evita olhar à frente ou para aos lados. Também não olhes para trás. Tapa os ouvidos, faz por não ouvires nem ver, não sentir medo. O tesouro é grande, mas, se tiveres medo, se fugires tudo se encantará, transformando-se em nada. Então, perderás a fortuna tu e eu estarei irremediavelmente perdido ou vagarei por mais cem anos, a partir de quando terei licença para oferecer o tesouro a outro. Penarei durante um século, deambulando no espaço, sem pouso e sem destino, sem o descanso da eternidade. Consegui, cem anos depois de morto permissão para desenterrar, por via de uma alma boa que venha da minha geração, o suor do meu rosto, representado pela cruz do Senhor, que por avareza sepultei debaixo do chão. Vai à meia noite em ponto, nunca em outra hora. Vai só. Tampa os ouvidos. Não olhes para os lados. Nem para frente. Nem para trás. Não tenhas medo, não fujas pelo amor de Deus não fujas. Senão tudo estará perdido, não terás paz na vida e eu não terei paz na morte.

Em seguida ao discurso a visão foi-se diluindo, fazendo-se em sombra, em nada. Mal acreditava. Mas era tudo verdade. Não sabia seguramente se estivera dormindo ou acordado. Vira realmente a pessoa. A lembrança que me ocorreu foi a do bisavô paterno descrito muitas vezes pelo meu pai como um velho de barbas brancas e longas, em seus últimos anos vestido em um amplo chambre de linho branco. Esclerosado, silencioso, quase incomunicável, levava horas e horas debaixo da velha cajazeira que em moço plantara na frente da casa de morada, contemplando os campos, talvez o mundo, a vida talvez. Segundo meu pai, este meu bisa era um homem de muitas posses, que muito boi vendia anualmente. Ao falecer, a família procurou o dinheiro que deveria ter amarrado na ponta do lenço no correr da vida e não o encontrou em nenhum lugar. Costumava recusar o pagamento em cédulas, queria tudo em níquel, prata e ouro. Moeda e mais moeda. Guardado, aliás, escondido estaria o dinheiro. Onde? Surgiu então a suspeita de que houvesse enterrado as muitas moedas amealhadas durante sua longa vida. E só podia haver enterrado, todos repetiam, porque muito apurava e nada gastava, tendo todas as coisas necessárias ao consumo no cultivo do solo e no amanho do gado. Nem nada dava a ninguém, unha-de-fome que era. Em algum lugar enterrara a fortuna. Fortuna sim, fortuna! Pelo tempo que amealhara, devia ter muito dinheiro. Em algum lugar? Lembraram-se da cajazeira onde armava a rede nos últimos anos, onde era morto e vivo nos dias finais. Buscaram que buscaram, sem nada encontrar. Então tiveram a idéia de escavar o quarto onde dormia. Nada. Pensaram no alpendre da casa, foram a todos os lugares imaginados, cavando, cavando sem nada obter. Ainda alguém advertiu que pouco avançou-se em torno da cajazeira. Mas lá não retornaram. De tudo sabia eu, por ouvir dizer, embora os anos passados, embora mortos os mais velhos, inclusive meu pai, embora quase todos os moços ignorantes dos fatos ou destes esquecidos. Só eu sabia dessas coisas, atencioso de ouvir que era, boa memória que possuía.

É voz corrente no sertão, e disso também eu sabia - que quem enterra dinheiro, aliás, quem morre deixando dinheiro enterrado, não se salva enquanto não encontra quem o arranque. No dinheiro grava-se simbolicamente a cruz de Cristo, que não pode ser sepultada. Ouvia, ainda, que arrancar dinheiro de alma proporciona felicidade de vida inteira, e pouco que represente o achado, não se acaba jamais, sendo fácil a sua multiplicação, que se opera por via dos mais simples negócios. Só tem que a pessoa não pode revelar o achado, porque isso lhe dará azar. Há de ser segredo seu unicamente e nem à mulher, se for casado, o revelará. Nem aos filhos, se os tiver. Arrancar dinheiro de alma é coisa difícil, por causa das assombrações que invariavelmente aparecem na hora ao beneficiário. Assim refletia apoiado no dito comum, quando, em certa manhã de sol, de posse do aviso, fazia a exploração do local. Por sinal, morava na Capital e tive de gastar uns bons cobres, por milagre conseguidos com um velho amigo, que, apesar de ressabiado de tanta facada dava-me sempre apoio. Andei de ônibus, de caminhão e a cavalo para chegar à fazenda. Teria mesmo de andar o resto da vida montado no lombo de um animal? - lá uma hora pensei enquanto na cavalgada recordava o discurso do bisavô, que Deus com ele estivesse.

Já a propriedade não era dos descendentes do meu ancestral e aí entrei com desculpas de quem andava em viagem de reminiscências e pesquisa. Em busca do meu tronco, interessado que estava em escrever um livro sobre os antepassados.

Olhei tudo, informei-me de muitas coisas, esmiucei e me sentia bem emocionalmente nessa busca de fatos passados que ouvira de meu pai. Até a madeira das cercas, dizia-me o vaqueiro, segundo constava, era quase toda cortada pessoalmente por aquele bravo que fora o seu primeiro dono. Conheci perfeitamente a árvore da visão. Sim, era aquela, sem nenhuma dúvida. Parecia minha amiga de eras antigas, embora nunca a tivesse visto. Orientei-me, identifiquei o nascente. Dissimuladamente andei de um lado para o outro medindo e remedindo os cinco passos. Tudo calculado. Pedi pousada por uns dias, enquanto conhecia melhor a propriedade que devia descrever no livro e fazia anotações necessárias a esse, esclareci. Reforcei que pretendia escrever a história dos antepassados, cuja raiz estava ali, naquela fazenda. De noite, estirado na rede que me foi estendida nos armadores do alpendre, onde preferia dormir em contato com a natureza, como expliquei ao vaqueiro para melhor inspirar-me, a visão reapareceu. Já aí, a figura do antepassado vinha perfeita, coincidindo com as informações que tivera de meu pai. E chegou a revelar-me quem era e a razão pela qual fora eu o escolhido entre as muitas dezenas de descendentes da terceira geração: - a minha coragem, sobretudo a coragem para o sofrimento. Não esmorecesse, não fugisse. Se não o poria a penar por mais um século e eu mesmo viveria uma vida de permanente desacerto.

- Vá só, leve uma pá e uma picareta. Não tenha medo. Não olhe para as visagens que acaso lhe apareçam. É a tentação do demo, querendo ganhar-me para as trevas. Tape os ouvidos, para ficar mouco aos roncos de assombração. Deixe estar que estarei ao seu lado para dar coragem. Meia noite em ponto. Em ponto. Agora. É hora de levantar. Veja as ferramentas no fim do alpendre. Vá pegá-las. É hora de levantar. É hora...

Pulei da rede. Olhei o relógio. Os ponteiros montados um por cima do outro marcavam doze horas da noite. As ferramentas estavam à mão. Foi só levantar-me cautelosamente, para não despertar ninguém, para não ser visto. Arrumar as coisas, pegar o cavalo no curral e selar, deixar tudo em ordem para a retirada urgente, uma fuga, aliás. Algodão nos ouvidos, os olhos semicerrados peguei as ferramentas e fui ao trabalho.

Quando cheguei ao lugar senti a terra tremer nos meus pés e um frio de enregelar se apossou de mim. Parei indeciso. Quis gritar, lembrei-me de fugir. Reagi. Andei cinco passos na direção indicada, a terra continuava a tremer. Ouvia sons terríveis, embora de ouvidos tapados. Era forte a ventania. Parecia que um temporal começava a desabar. Tremia. Tinha medo, muito, muito medo. Dez vezes pensei em recuar, dez vezes procurei reagir e iniciar o trabalho. Estava parado, sem ação, sem saber o que fizesse. Com muito esforço ergui a picareta no ar e quando a lancei no chão com todas as forças que me dava aquele instante de quase pavor, percebi que havia uma criança no ponto aonde ia descendo a ferramenta. Fechei os olhos sem tempo de evitar o desastre. Abri a boca para gritar, não cheguei a fazê-lo. Sabia que tinha enterrado a picareta no corpo de uma indefesa criança... Quando consegui abrir os olhos não vi nada, criança nenhuma, mas ouvi um berro terrível de animal ferido e sem lembrar-me da recomendação, levantei os olhos. Que horrível! Um enorme bode preto, monstruoso e peludo, chifres descomunais, olhos de fogo, despejando labaredas pelas ventas estava em minha frente. Sacudiu a cabeça e remeteu contra mim, como se fosse colher-me nos chifres de fogo. Quis correr e gritar. Ergui ainda uma vez a picareta e desci sobre a cabeça do animal monstruoso. A ferramenta enterrou-se no chão mais uma vez, fazendo subir o pó da terra seca. O animal já ali não estava.

A partir desse momento perdi o medo e não pensei mais em nada, não olhei para mais nenhum lugar que não fosse o ponto onde cavava. Procurei não ouvir o ronco da tempestade, os berros do bode, o rugir de feras, os gritos de desespero e de socorro que pareciam vir de toda parte, como se o mundo se acabasse naquele momento e tudo desabasse em torno de mim. Olhos semicerrados passei a cavar freneticamente. Ali estava minha fortuna, pude raciocinar, ali estava a salvação do meu velho antepassado, avô de meu pai. Ia cavar até o fim, não tinha medo, não teria medo, era homem de fibra, de coragem, homem macho. Cavei, cavei. Lembrei-me de meu pai, de minha mãe, de meus irmãos, da fortuna que levaria para todos. Para todos? Devia ser para todos? Ou seria somente minha? Não fora eu e não qualquer outro o escolhido? Por que o ancestral me escolhera? Porque eu tinha coragem, me dissera. Outro não estaria ali, já haveria urinado nas calças, se coisa pior não fizesse. Já teria corrido. Se não desmaiasse, se não morresse de medo. Devia dividir a fortuna com os irmãos - meus pais já não viviam -, os familiares descendentes do bisavô? Ou aquilo seria coisa minha? Nada me fora dito sobre isso, então, meu haveria de ser o achado... Haveria realmente dinheiro ou seria uma balela, um sonho? Quem sabe não passava de uma gracinha de um espírito brincalhão, de um sonho apenas? Afinal, era fantasioso tudo que aparecera. Sim, podia ser um blefe. Ao pensar assim, passei a cavar mais devagar, quase desanimado. Lembrei-me em seguida: - e as visagens? Seria nada as visagens, medo somente? Levantei os olhos. À minha frente estava já não a figura do bode preto, mas o próprio diabo, em carne e osso ou em espírito, sabia lá, enorme rabo que descia até o chão e aí se encaracolava como uma cascavel, chifres molengos balançando ao vento, olhos de fogo, cara do diabo mesmo, a coisa mais feia que houvesse deparado à minha frente. E os gritos, os ruídos, o ronco surdo dos ventos, tudo recomeçou. O medo retornou, mais uma vez a vontade de gritar e de correr. Dei meia volta para fugir. Às minhas costas, como se me amparasse contra o mal, estava a imagem suave e tristonha do velhinho meu antepassado, que soprou:

- Como medo, homem de Deus? Já tão no fim? Não estás só. Coragem!

Encarei frente a frente, os olhos levantados, bem junto de mim, aquela criatura e só então reconheci a semelhança.

- Meu pai – balbuciei. E senti renovada a coragem.

Retornei ao trabalho. Cavei, cavei, cavei. Por fim, a ferramenta deu em uma coisa dura. Tive mais cuidado no cavar. Descobri uma pedra e a retirei. Era uma laje que tapava a botija. Aí estavam brilhando ao luar, muitas moedas de ouro e de prata. Muitas, muitas, muitas, a botija até o gargalo. Cavei um pouco mais e a puxei para o alto.

- Graças a Deus. É uma dádiva dos céus para os meus filhos tão necessitados nesse momento...

- Metade utilizará mandando celebrar missas por mim e minha mulher, pelos nossos descendestes até hoje falecidos, ouvi como de uma voz vinda dos céus.

- Assim seja, Senhor! Aos céus gritei a toda voz de mãos erguidas para o alto

No alto brilhava a lua. O vento soprava brandamente, o ermo era silencioso, nem os grilos chiavam naquela noite de estio. Foi o tempo de agasalhar as moedas que afinal não eram tantas, menor o vaso do que parecia e não tão cheio, nos alforjes e tomar a estrada. Fundo era o sono do pessoal da casa, que nada viu nem nada percebeu. Só no dia seguinte o chão cavado, despertou a suspeita de que aquele desconhecido era louco ou buscava algum tesouro perdido. Já havia ido embora, estava longe, a caminho da Capital.