Meu rio
Tenho certeza que o meu amigo Zé Peru ficaria admirado se lhe dissesse, numa de nossas rondas pelos botecos, que é um ribeirinho, e que eu sinto uma tremenda inveja dele por causa disso. Em quase sessenta anos de Marechal Hermes ele talvez nunca tenha usado essa palavra, da mesma forma que levou cinqüenta e oito para aprender que o rio que passa literalmente na porta de sua casa chama-se Tingüi.
De pura farra, numa tarde em que íamos juntos ao supermercado de Bento Ribeiro, pátria da Xuxa e do Ronaldinho, disse a ele: “Vamos pela rua do Tingüi.” O velho parceiro de copo virou-se para mim com um sorriso de tímido deboche nos lábios e perguntou: “Quem é esse cara?”
Mas o Zé Peru não está sozinho nisso. Sem dúvida, até que o estado mandasse fazer em 2005 uma limpeza manual (como anunciava uma grande placa junto à estação de trem) no trecho do rio sob a linha férrea — passagem de pedestre entre os dois lados do bairro —, quase ninguém por aqui sequer suspeitava que ele tivesse nome.
Na própria imprensa carioca, quando se noticiou, em dezembro de 2006, uma grande operação da Polícia Federal na favela do Muquiço, em Deodoro, onde o nosso rio, que não é bobo nem nada, passa de fininho, chamaram ele de simples córrego. (Tratava-se de investigar a ligação de policiais militares com traficantes de armas e drogas do Muquiço, e veio mesmo a ser batizada de Operação Tingüi.) Confesso que sou meio bairrista nessas coisas, e fiquei muito puto com a reportagem, como se esta estivesse chamando o meu boi..., vocês sabem.
Ora, atualmente ali todo mundo passa de fininho. Fossem um pouco mais adiante, pelos imensos prédios da Fundação da Casa Popular, e teriam uma bela surpresa. O poeta Caetano Veloso, por exemplo, foi e tirou de letra:
Meu Rio
Perto da favela do Muquiço
Eu menino já entendia isso...
De fato, ao seguir por trás de Guadalupe, e aqui já estamos falando de uns quatro ou cinco quilômetros a partir de onde moro, o Tingüi alarga-se e pode até ser visto da janela de uma ex-namorada, emprestando uma poesia toda especial aos meus sentimentos para com ele. Na época eu não sabia que era o mesmo curso d’água, tão longe do meu bairro, e também ali os próprios residentes do vasto condomínio operário onde a linda garota morava queriam vê-lo pelas costas. Mato demais em volta, mau cheiro, lixo e dejetos de toda ordem, tudo contribuía para esse desprezo nos idos de 1980. As grandes campanhas ecológicas eram ainda coisa incipiente entre nós, e ninguém se dava conta de que o correto seria cuidar do rio, não rejeitá-lo. Quando chovia forte, era um deus-nos-acuda de enchentes e casas invadidas pelas águas.
É bom ter um rio por perto. Ou seja: alguma coisa me diz que é muito bom ter um rio por perto. Heráclito entrava no limpíssimo Caistro com a água pelas canelas e numa dessas inventou o conceito filosófico mais exitoso do pensamento ocidental — o devir. Não dá para fazer o mesmo no meu pobre e sujo Tingüi, mas é bom tê-lo por perto, humilde que seja, fluindo como um sonho bom em minha vida.
[13.4.2007]
Tenho certeza que o meu amigo Zé Peru ficaria admirado se lhe dissesse, numa de nossas rondas pelos botecos, que é um ribeirinho, e que eu sinto uma tremenda inveja dele por causa disso. Em quase sessenta anos de Marechal Hermes ele talvez nunca tenha usado essa palavra, da mesma forma que levou cinqüenta e oito para aprender que o rio que passa literalmente na porta de sua casa chama-se Tingüi.
De pura farra, numa tarde em que íamos juntos ao supermercado de Bento Ribeiro, pátria da Xuxa e do Ronaldinho, disse a ele: “Vamos pela rua do Tingüi.” O velho parceiro de copo virou-se para mim com um sorriso de tímido deboche nos lábios e perguntou: “Quem é esse cara?”
Mas o Zé Peru não está sozinho nisso. Sem dúvida, até que o estado mandasse fazer em 2005 uma limpeza manual (como anunciava uma grande placa junto à estação de trem) no trecho do rio sob a linha férrea — passagem de pedestre entre os dois lados do bairro —, quase ninguém por aqui sequer suspeitava que ele tivesse nome.
Na própria imprensa carioca, quando se noticiou, em dezembro de 2006, uma grande operação da Polícia Federal na favela do Muquiço, em Deodoro, onde o nosso rio, que não é bobo nem nada, passa de fininho, chamaram ele de simples córrego. (Tratava-se de investigar a ligação de policiais militares com traficantes de armas e drogas do Muquiço, e veio mesmo a ser batizada de Operação Tingüi.) Confesso que sou meio bairrista nessas coisas, e fiquei muito puto com a reportagem, como se esta estivesse chamando o meu boi..., vocês sabem.
Ora, atualmente ali todo mundo passa de fininho. Fossem um pouco mais adiante, pelos imensos prédios da Fundação da Casa Popular, e teriam uma bela surpresa. O poeta Caetano Veloso, por exemplo, foi e tirou de letra:
Meu Rio
Perto da favela do Muquiço
Eu menino já entendia isso...
De fato, ao seguir por trás de Guadalupe, e aqui já estamos falando de uns quatro ou cinco quilômetros a partir de onde moro, o Tingüi alarga-se e pode até ser visto da janela de uma ex-namorada, emprestando uma poesia toda especial aos meus sentimentos para com ele. Na época eu não sabia que era o mesmo curso d’água, tão longe do meu bairro, e também ali os próprios residentes do vasto condomínio operário onde a linda garota morava queriam vê-lo pelas costas. Mato demais em volta, mau cheiro, lixo e dejetos de toda ordem, tudo contribuía para esse desprezo nos idos de 1980. As grandes campanhas ecológicas eram ainda coisa incipiente entre nós, e ninguém se dava conta de que o correto seria cuidar do rio, não rejeitá-lo. Quando chovia forte, era um deus-nos-acuda de enchentes e casas invadidas pelas águas.
É bom ter um rio por perto. Ou seja: alguma coisa me diz que é muito bom ter um rio por perto. Heráclito entrava no limpíssimo Caistro com a água pelas canelas e numa dessas inventou o conceito filosófico mais exitoso do pensamento ocidental — o devir. Não dá para fazer o mesmo no meu pobre e sujo Tingüi, mas é bom tê-lo por perto, humilde que seja, fluindo como um sonho bom em minha vida.
[13.4.2007]