As raridades dessa vida
Passei pela rua detrás daquela grande escola estadual, e vi um garoto, parecendo um bicho, mexendo e remoendo o latão de lixo, até encontrar alguma sobra da feira livre, que aconteceu naquela rua, naquela manhã. Talvez ele encontrasse massas de pastéis mordidos, pedaços de frutas e verduras rejeitadas por quem passou por lá. E o menino encontrou. Ele encontrou um pedaço de pão recheado com queijo, o suficiente para fazer a sua primeira e última refeição do dia.
O garoto de meia estatura e calça rasgada não era aluno daquela escola, e de nenhuma outra da cidade. As brincadeiras dele não eram de bola e nem de peão, a brincadeira preferida era lutar por sua vida, e comida, em plenos 10 anos de idade – no máximo. O curioso, mais do que ver uma criança morando na rua, aconteceu quando aquele menino sentou em frente à escola estadual para se alimentar, e ficou olhando as outras crianças de sua idade, bem arrumadas e humoradas, correndo e brincando na hora da saída. E como se ele fizesse parte da brincadeira também, gargalhava vendo as peripécias daqueles outros meninos.
A raridade aconteceu quando a malícia e inocência de qualquer criança fizeram com que ele fosse convidado a participar da brincadeira também. Mas ele se assustou e correu em direção a outro lugar. Reação tão rara de se imaginar em outros tempos, quando em brincadeiras de crianças de 10 anos sempre cabia mais um, e não existiam sustos e nem medos, muito menos próprios preconceitos.
E caiu a chuva no final da tarde, chuva forte com um vento da mesma coragem, quebrou as telhas de casas pobres, e os vidros dos carros que estavam parados na rua naquele momento. Atingiu densamente os moradores de rua, a ponto de um deles ir parar no hospital. A chuva era tão forte que desmontou um dos jardins da cidade. Mas uma flor daquele jardim não se moveu. E no outro dia, quando o sol raiou, ela era única, e de tão rara coragem que alimentou os moradores em volta do jardim de esperança. A tão rara esperança!
Esperança era o motivo do olhar brilhante que munia uma garota, chamada Flor. Ela estava dormindo quando a força do vento e da chuva destruiu o seu lar, e levou embora as poucas conquistas de sua família. E o jardim em que ela brincava de cantar e dançar, todos os dias, não estava mais lá. A garota perdeu o seu sorriso ao ver ir embora o de seus pais. Mas ao caminhar entre os estragos, encontrou um Ser do mesmo nome que o seu, e tão viva quanto a sua doçura.
Ela correu para falar a seus pais que nem tudo estava perdido, e que uma pequena flor a chamava para brincar e construir todo aquele jardim novamente. As frases daquela garota foram a razão para que o antigo vilarejo com um pequeno jardim se transformasse em um grande bosque, perfeito para sonhar, e apelidado de Esperança.
A tão rara esperança, tão difícil de encontrar, tão rara quanto pessoas que não acreditam que o impossível não existe para quem sabe sonhar. São raros os sorrisos, e os sonhos realizados. Porém, há uma raridade na vida que alimenta o meu jardim de esperança: o amor. E amor a qualquer Ser e a qualquer desejo é o começo de novos sonhos. E assim, nessa vida, em uma brincadeira de criança ou num dilúvio vindo do céu, a raridade será a tristeza, mas da tristeza é fácil cuidar: deixa que o amor sabe o que faz!
Kallil Dib – Jornalista
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