RECORDAÇÕES

Cada pessoa tem, na sua vida, o seu modo de saber superar os dias, os meses e os anos da idade que Deus vai lhe concedendo, até alcançar a velhice, superando o desgaste ou a decadência causada pelo decorrer do tempo. Algumas a enfrentam até com galhardia, outras a suportam razoavelmente, outras, enfim, sentem faltar-lhes energia para enfrentá-las. A mim, Deus tem me dado condições de, até agora, ir defrontando as dificuldades que os meus amigos já conhecem. Uma dessas condições é a lucidez que ainda tenho, lucidez que se diversifica a cada dia, porém sinto que com menor ânimo; é recordar o passado e passar as horas em ler, escrever, ouvir música, conviver com a minha numerosa família, uma das bênçãos que Ele me concedeu.

Tais recordações são muitas e bem variadas. Uma das características do nosso pensamento é a vertiginosa velocidade com que muda de um tema a outro. Agora, nesta tarde, eu estava no meu escritório um tanto abatido, sentado na minha velha poltrona e fui passeando pelo passado, e entre as minhas lembranças, nem sei por que, surgiu o meu tempo do Ginásio Diocesano de Mossoró (de 1938 a 1942, lá se vão mais de 70 anos...) e passei a recordar os meus colegas e o modo de ser de cada um. Recordei João Berchmans (que alguns anos depois seria meu concunhado, compadre e excelente amigo); Antônio Salem (também meu compadre) e outros, inclusive Paulo Gutemberg. Este, além de inteligente, era alegre e gostava de música. E, ao evocar agora, a sua memória, ocorreu-me que, em 1941, surgiu o samba de breque, letra e música de Moreira da Silva e interpretada por ele mesmo: “Amigo urso saudações polares/ ao leres esta hás de te lembrares/daquela grana que te emprestei/quando estavas mau de vida/e nunca te cobrei./Hoje estás bem/e me encontro em apuros...”, letra que eu conhecia – e ainda sei toda - graças ao sucesso que gerou então. Paulo tinha preferência por samba e gostava de cantá-los, à moda de Silvio Caldas, batendo o ritmo na caixa de fósforos. Era o filho mais moço de Costinha de Horácio (Antônio Costa Filho), que também era o pai da minha amiga Maria Lanuza da Costa (atualmente com 90 anos), que foi professora e, depois, Diretora da Escola Normal de Mossoró, ao tempo em que meu irmão José Augusto Rodrigues, de quem era amiga, foi Diretor do Centro Educacional de Mossoró. Paulo chegou a organizar, com outros colegas, um conjunto musical “Pilantras de la Miseria”, para as brincadeiras da turma.

A propósito de seu Costinha, dono do Bar Suez, nós estudantes gostávamos de ir à tarde para a sua calçada ouvi-lo narrar histórias e contar fatos da política de Mossoró. Admirava-nos ele reproduzir os discursos que ouvira dos caravaneiros de 1930 (Batista Luzardo, João Neves da Fontoura e outros), que ele repetia com sua voz aguda e tonitruante.

A nossa vida é assim, quase um urso polar, imagino eu. A gente lhe empresta, às vezes insensatamente, as nossas fases ricas de saúde e energia e vai assim vivendo como se servindo aos “amigos”. Quando se alcança a velhice (tem pessoas que não gostam desta expressão, mas não há outra que a substitua) e se começa a conjecturar sobre a nossa “sorte” às vezes nos encontramos no “Polo Norte” e nos defrontamos com um “urso polar” caminhando em nossa direção. Aí nos ocorre tudo o que demos à vida e nos lembramos de toda a energia que dispendemos imprudentemente em nossa mocidade, sem pensar que, ao fim da jornada, o “urso” da velhice nos apareceria tal qual aquele imaginado pelo nosso grande sambista. Aí, então, vamos cobrar à vida que levamos o pagamento da “dívida” resultante do comportamento que tivemos na mocidade e nos anos seguintes em que não pensávamos que o “urso polar” da velhice viria abocanhar-nos a vida.

O leitor deve estar julgando a analogia inadequada, no que eu até concordo, mas foi a que me ocorreu nesta tarde tediosa, apesar da bela música que estou ouvindo e que, em vez de estar acalentando o meu espírito, está induzindo-o à meditação, embora a uma meditação melancólica. Perdoem-me.

Natal 15/08/2013

Obery Rodrigues
Enviado por Obery Rodrigues em 23/08/2013
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