CRÔNICAS BONAERENSES (137º dia) - O fantasma do Hotel

Era uma noite tranquila e pacata no Hotel Babel, onde trabalho, aqui em Buenos Aires. Até que, antes de deixar o calor do hotel e enveredar-se pelo frio polar das ruas argentinas, o recepcionista que me passava o turno me perguntou, em castellano:

- E tu te dá bem com o Babelito?

Sem saber o que dizer ou sequer quem era Babelito e, como sei que os argentinos da Capital são debochados e piadistas, saí pela tangente e respondi:

- Sim, o Babelito dorme à noite quando estou aqui.

Ele sorriu e se foi. Mas deixou algo. Um certo mistério no ar. Quem era o Babelito? Seria algum outro dono que eu não conheço ainda? Pela manhã, quando os primeiros raios de sol beijaram delicadamente o chão de Buenos Aires e a mulher que limpa os quartos chegou, interroguei-a sobre o tal Babelito. Ela ficou pálida, me olhou fundo nos olhos e perguntou, em espanhol, com um sotaque bem chileno:

- Por quê? Tu viu alguma coisa?

Eu disse que não, apenas que tinham me perguntado sobre. Ela sentou-se. Bebeu mais um gole de café e fitou o nada, como quem tentava lembrar uma história que fora encaixotada e lacrada em algum canto obscuro da memória.

Então ela me contou sobre o Babelito. A lenda começou há alguns anos, quando um dos recepcionistas contou aterrorizado a todos que trabalhavam no hotel que, após fechar a porta de entrada, girou sobre os calcanhares na direção da cozinha. E ali, passando pela porta que leva à cozinha, ia um homem velho, de aparência polida, com um sobretudo sumptuoso e uma cartola alta, do tipo que se usava pelos idos dos anos 20 ou 30. Aquela cartola... aquela cartola alta nunca saiu da cabeça dele. Ele correu irrompendo a entrada da cozinha e, para sua surpresa, não havia ninguém lá dentro. Ele jurou que viu algo, pediu as imagens das câmeras de segurança, mas as mesmas nada mostravam. Virou motivo de piada e chacota entre os demais recepcionistas.

Até que, anos depois, um outro recepcionista trabalhava no mesmo turno da noite no hotel. Certa feita, uma brasileira, mulata cor de jambo, estava sentada na mesa da recepção conversando com ele. Conversa vai, conversa vem, portuñol bailando pelo ar... até que a mulata começa a dar algumas olhadas na direção da porta da cozinha. Olha uma, olha duas, olha três vezes. Até que a brasileira diz para o recepcionista:

- Sabe... tu é gente boa! Mas esse velho de cartola que fica me olhando já tá me enchendo o saco!

Com os olhos estalados e o suor começando a brotas na têmpora, o recepcionista pergunta, com a voz tremula de medo e espanto:

- Mas que... que velho de cartola??

A brazuca aponta para a porta e diz:

- Esse aí! Velho idiota! Para de me olhar!! Cala a boca, idiota!!

E começa a gesticular em direção ao vazio. O recepcionista se empertigou rígido sobre a cadeira de pavor enquanto a brasileira discutia com o fantasma parado em frente à porta. No outro dia, lógico que todos os empregados, funcionários, donos e até um padre viram as imagens das câmeras de segurança, onde claramente a mulata fazia gestos para o nada. Mas o que surpreendeu foi a descrição do homem à soleira: um velho, bem vestido e de cartola alta... aaah, a cartola! Cogitou-se chamar um curandeiro, benzer o hotel e até chamar um exorcista. Mas, segundo minha narradora e testemunha ocular desta história, ela mesma interviu e disse que o fantasma não era mal, não causava dano. O “Babelito” é um cara legal...

E agora, anos depois, sou eu quem fica neste turno. Estes dois recepcionistas já se foram, as histórias ficaram. Histórias típicas de uma cidade como Buenos Aires. Uma cidade que é feita de histórias, sejam elas de personagens reais ou de criações da mente humana.

E eu, por aqui, sigo esperando ser apresentado ao Babelito, o guardião da porta da cozinha, o velho da cartola alta, ou apenas o fantasminha camarada do nosso hotel.

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¿Qué pasa, Fábio?

Lennon ou McCartney

Estava eu parado, em pé, encostado no batente da porta. Ao meu lado estava meu amigo Rodrigo Quintana, cara que admiro pela ética e pelo caráter justo, mas que adora entrar numa discussão. Estávamos em um pub – creio que era o La Estación. Havíamos ido comer em algum lugar e entramos ali para tirar a poeira da garganta com um pint de cerveja artesanal. E de trigo! Ali estávamos os dois, em pé, pois não havia cadeiras vazias para sentar. No outro extremo do ambiente, um cara cantando e tocando violão. Ele não era bom, não era ruim, ele era... bem, ele era só um desses caras que canta e toca violão em barzinhos. Terminada uma música, o pessoal aplaude. O carinha que canta e toca violão agradece e puxa a próxima música. Era (Just Like) Starting Over, da carreira solo do John Lennon. O Quintana se aproximou de mim e, com seu jeito todo peculiar de provocação arrogante, me disse ao pé do ouvido:

- Para mim, só essa música do John Lennon é melhor que qualquer uma da carreira solo do Paul McCartney.

Ao que eu prontamente respondi:

-Nããããããã... tá louco! Não chega nem perto da... – e as reticências travaram na minha boca.

Na verdade, estas reticências estão na minha boca até hoje, paradas, esperando um final para a frase. Mas qual música da carreira solo do Paul pode ser melhor que esta música do John? Há de haver uma! A carreira solo do Paul não pode ser pior que a do John, McCartney não pode ser inferior ao Lennon, não pode, não pode!!! Pensei em várias músicas desde este dia, My Love, Live and Let Die, Another Day, Maybe I´m Amazed, Magic, English Tea, Listen to What The Man Said, Coming Up, Tomorrow, Band On The Run, Here Today, The Other Me (esta última com a qual me identifico afu!)… nada. E isto que o Paul teve décadas a mais que Lennon para escrever uma música melhor! Não podia acreditar. Volta e meia fico pensando, esperando que me venha à cabeça alguma música. As reticências ainda estão na minha boca. Mas tudo bem, pode ser mesmo que o Paul não tenha escrito uma música melhor que (Just Like) Starting Over. Afinal, ele tem uma carreira solo mais completa que o Lennon, tem várias músicas excelentes em álbuns memoráveis que tu escuta de cabo a rabo sem enjoar, mesmo que nenhuma seja melhor que (Just Like) Starting Over.

E talvez a vida seja assim. Talvez, por mais que eu me esforce em ser uma pessoa melhor, em ser um carinha legal, em não ser tão arrogante, em assumir meus erros e diminuir meus vícios do passado, para algumas pessoas eu sempre vou ser o Fábio que não passa de um idiota. Nada que eu faça vai ser relevante. Eu posso viver até o final da minha vida como uma pessoa exemplar, um cara humilde e cumpridor de suas obrigações e horários, um marido perfeito, o pai do ano, e mesmo assim alguém, quando me ver, pode lembrar apenas de uma palavra que eu disse e não deveria ter dito ou de algo que eu fiz e não deveria ter feito. Nada importa. Nós não somos o que somos, somos o que os outros pensam que somos, ou o que os outros veem. E as pessoas não mudam de opinião assim tão fácil.

Até por que, como diria o inesquecível personagem de Hugh Laurie, House, “Conquistas só duram até alguém estragar. Fracassos são para sempre”. Talvez por isso o gremista sempre lembre o colorado do episódio do Mazembe e o colorado sempre lembre o gremista que ele caiu duas vezes à série B. E no fundo, ambos sabem dessa mancha, mesmo tendo conquistado o mundo. É assim mesmo. Por mais triste que seja, fracassos são pra sempre e as pessoas não mudam, a não ser que as pessoas já estejam dispostas a mudar e aconteça algo grave para que elas comecem a mudança. A nossa vida, na verdade, só importa para nós. Os outros até podem querer que tu estejas bem, mas nunca melhores que eles mesmos. É muito houseano, mas é verdade. Conquistas só valem para quem as conquistou, fracassos são para todos.

Por sorte, eu não ligo um caralho murcho para o que os outros pensam de mim. Fiz tudo que fiz, passei tudo que passei, agora estou fazendo outra vez, só que diferente. Da maneira que eu acho correto agora. Talvez amanhã eu faça de outra forma, não sei. As pessoas não mudam. Podem até mudar as atitudes, os pensamentos e as convicções, mas por dentro... por dentro levam o mesmo caráter.

Estou feliz com como sou agora, e não ligo se não notam ou se simplesmente não veem. Ainda sou um arrogante idiota por dentro, mas não me importo. O que me importo de verdade, o que me faz parar para pensar, o que realmente me tira o sono é que não pode não haver uma música da carreira solo do Paul McCartney que seja melhor que (Just Like) Starting Over, do John Lennon! Não pode!! E eu fico com as reticências na boca. Tem uma que é melhor, é aquela... aquela, saca? Aquela...

Fábio Grehs
Enviado por Fábio Grehs em 21/08/2013
Código do texto: T4444647
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