CRÔNICAS BONAERENSES (110º dia) – “O frio já vem…”
“...mas não uso este adorno moderno / chegou o inverno / o frio já vem... portanto, não se esqueça do seu cachecol e a piercintagem do nosso amor.” Assim, há quase dez anos, já vaticinou uma das mais promissoras extintas bandas do rock alternativo de Porto Alegre, a Superguidis. Embora eu já tenha pesquisado a etimologia e o significado da palavra piercintagem, nunca descobri o que seria a piercintagem do nosso amor. Imagino que seja um adjetivo. Não sei. Mas o que significa não esquecer o cachecol, pois chegou o inverno e o frio já vem, disto eu entendo bem há quase três décadas.
Dá-me nojo, asco, ojeriza, repugnância, quando alguém do Rio Grande do Sul ou da Argentina diz tamanha estultice, tal como reclamar do frio, reclamar do inverno. Ora, bolas, ¡deja de joder! O frio está aí há mais de alguns bilhões de anos! Tu estás vivendo numa cidade com estações climáticas definidas e com inverno rigoroso! E o pior é que os mesmos que reclamam do frio, de ter que ficar embaixo do cobertor, de ter que se abrigar demasiadamente, são os que vão reclamar do calor no verão, de ter que caminhar no olho do sol da tarde, de tomar um ônibus lotado com pessoas cheirando a leite azedo, de ter que usar terno e gravata na formatura, de que a cerveja esquenta muito rápido no copo. Que hipocrisia! O mundo é assim e assim a humanidade e toda a vida na Terra têm sobrevivido.
Claro que respeito quem não gosta do frio. Eu, por exemplo, não gosto do calor. Se vivesse na região dos trópicos me mudaria de mala e cuia, literalmente. Por isso lembro a todos que vocês têm esta opção antes de reclamar do próximo inverno. Ano que vem teremos outro inverno. E no próximo, no próximo e, por incrível que pareça, no próximo também, porque a Terra vai dar outra volta no Sol e, aparentemente, ninguém para este maldito planetinha de girar. Portanto, preparem-se desde já para o inverno que vem, assim teremos menos reclamações. Não entendo como pessoas que passam por isso constantemente há mais de duas décadas ainda se espantam com tal fenômeno natural.
Parece só uma bela frase em uma bela canção, mas esta frase da Superguidis “chegou o inverno / o frio já vem... portanto, não se esqueça do seu cachecol” tem muito a nos ensinar para acalentarmos no rigoroso frio, tanto aqui em Buenos Aires como nas demais regiões desta América subtropical. Pensemos: chegou o inverno. Ok. Logo, o frio já vem. Ok. Portanto, abrigue-se se não queres sentir frio! Compre uma estufa se queres esquentar uma peça da casa! Vede as janelas para que o frio não entre e o calor não saia! E, o mais importante, use meia de lã.
Já dizia meu pai: “os pés são o termômetro do corpo” – Grehs, Wilson.
Se eu puder deixar um conselho pra este inverno seria este: use meia de lã.
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Aqui em Buenos Aires, o frio chegou como se fosse uma estrela do rock: causando frisson, gemidos, comentários positivos e negativos, como acontece todos os anos. Ontem, tive que sair para trabalhar com 1 grau e muito vento. Não reclamei. Terminei de tomar meu mate tranquilo dentro de casa com a calefação ligada. Já estava aquecido, por fora e por dentro. Apenas coloquei uma ceroula (ainda se diz ceroula?), uma camisa extra, um casaco pesado, um cachecol cobrindo o entorno do pescoço e do queixo, uma touca (nunca havia usado uma touca de lã), um par de meias normais e um par de meias de lã. Meias de lã!! Caminhei como oito quadras com o frio cortante zunindo nos ouvidos, como alguém que assovia uma triste melodia. Não morri, não reclamei. Cheguei ao hotel e me desvencilhei das roupas pesadas, pois há calefação. Na volta pra casa, a mesma coisa. Chegando em casa, liguei a calefação e aos poucos fui tirando as camadas de roupa, como uma cobra que perde a pele escamosa periodicamente. Tomei um café com leite bem quente e comi um pomelo rosado.
Eu passo frio como todo mundo. Mas não sinto frio. Não reclamo e ainda não peguei gripe. Portanto, aí estão os segredos para quem quer viver mais alguns anos neste planetinha minúsculo que tem regiões com invernos rigorosos: abrigue-se! Feche as janelas quando não tem sol! Ligue a estufa ou a lareira! Tome bebidas quentes e coma frutas ricas em vitamina C! E, o mais importante, como já diria meu pai, use meias de lã... afinal, os pés são o termômetro do corpo e reclamar do inverno e do frio não vai evitar nenhum dos dois para os anos vindouros.
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¿Qué pasa, Fábio?
¡Todos los gatitos son zurdos! (Todos os gatinhos são canhotos!)
Caminhei a passos largos, mãos no bolso, cachecol para proteger do frio, casaco de inverno, até o meu pub favorito de San Telmo, o Breoghan. As melhores cervejas artesanais feitas no pátio do bar, metade do preço até às 22h, boa música tocando, pequeno e aconchegante... o único problema é que não tem wifi.
Sento sozinho no balcão e peço a cerveja de sempre. Sem contato com o mundo, sozinho, sem ninguém pra conversar, fitei o horizonte a minha frente. Ali havia um gatinho. E o gatinho balançava o braço esquerdo de trás para frente, em movimentos constantes e marcados, sempre com a mesma velocidade, como se fosse um metrônomo! Apoiei os cotovelos no balcão e o queixo na palma das mãos. Observei o gatinho canhoto, incansável, imparável, mas quase imperceptível em meio às bugigangas de decoração. Mas ele teimava em levar a pata esquerda desde uma garrafa de Amarula até uma bolacha de cerveja grudada na parede que dizia “God save the Pint!” sobre uma bandeira da Union Jack. O gato insistia, o gato seguia e eu não conseguia desviar o olhar. Agarrava o copo de meio litro com uma mão, levava-o até a boca, sorvia um pouco mais da combinação de cereais fermentados, leveduras e maltes, e minha cabeça não parava de pensar no gatinho, o gatinho canhoto, por que canhoto? Por quê???
Finalmente, me desvencilhei da hipnose do gatinho dourado. Girei no assento e olhei para o outro lado do bar. E adivinhem? Ali também havia um gatinho! Igual, mesma cor, mesmo movimento de pata, a mesma frequência, e... canhoto!! Foi então que cheguei a algumas conclusões:
Já estou a suficiente tempo em Buenos Aires para saber que estou mais feliz que em Porto Alegre. Gosto daqui, gosto desta cidade, do país, do povo em geral, da seriedade, da arrogância, das argentinas rollingas, das franjas, das roupas, do mate, da carne, da rotina, de tomar subte, de ir ao museu, de passear pelas praças numa tarde de sol, do frio que vem com o vento do Rio da Prata, das bandas de rock, dos pubs de cerveja artesanal, do fernet, dos alfajores de maisena, das festas roqueiras, dos shows internacionais corriqueiros, das bandas covers de Beatles, do meu emprego, da minha casa, das minhas conquistas, da banda com quem estou tocando, de como eu cresci como pessoa, como tive forças de superar adversidades e vícios para viver uma vida diferente e como esta cidade me faz bem. Tudo isto eu percebi sobre Buenos Aires.
A única coisa que só agora fui perceber é que todos os gatinhos são canhotos. Larguei o copo na mesa e exclamei para mim mesmo:
- ¡Todos los gatitos son zurdos! – (foto do gatinho em questão abaixo):
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Azul não!!!
Não importa de que lado do Rio Grande do Sul tu venhas. Um colorado sempre evita comprar algo azul e um gremista sempre evita comprar algo vermelho. Desde pequeno, se haviam duas bicicletas destas cores, eu escolhia a vermelha. Se haviam dois aparelhos de celulares destas cores, eu escolhia o vermelho. Oras, até hoje, quando vou ao mercado, só pego a cestinha vermelha, o sabonete líquido vermelho, o detergente vermelho, o que quer que seja, e mesmo se não houver na cor vermelha, que não seja azul. Isto é algo que torcedores de Inter e Grêmio têm em comum: Um colorado sempre evita comprar algo azul e um gremista sempre evita comprar algo vermelho. Se isto for considerado doença pela psicanalise, o Rio Grande do Sul é um prato cheio para os psiquiatras, psicólogos, analistas de plantão e um problema para o SUS.
Como meu notebook – que há muito estava sem webcam, sem imagem na tela e desligando sozinho – resolveu descansar seu hardware, software e drivers para todo o sempre, não tive escolha: tive que comprar outro. Mas escolhi comprar um netbook, mais barato e bem mais fácil de transportar, por ser do tamanho de um livro comum.
No supermercado COTO, um netbook barato estava 2.299,00 AR$. Bem barato! O mais barato que encontrei! Só havia um problema: eles só tinham na cor azul! Eu disse:
- Não! Azul não! Não quero! Não quero! Quero um vermelho! Ver-me-lho, colorado! Inter!
Havia um vermelho, mas de uma marca bem inferior e por 2.899,00 AR$! 600 pesos mais caro!! É como 24 pintas de cerveja artesanal mais caro! É como 4 semanas de supermercado mais caro! É como 240 viagens de subte mais caro! Não conseguia dormir... não acreditava que teria que levar o azul. Além de ser azul, as teclas eram pretas e haviam detalhes em branco, que deixava o teclado mais gremista! Eu me revirava na cama, dizia “não, azul não...”, pensava em como não queria assistir aos jogos do Internacional naquele netbook secador, tricolor, maldizia o dono do supermercado COTO por não ter o mesmo produto pelo mesmo preço em outra cor... Azul não! Qualquer coisa, qualquer cor, menos azul, preto e branco!! Que fazer? Que fazer?...
Decidi: compro o vermelho, pago a diferença. Tomo 24 pintas de cerveja a menos, não importa, mas azul não! No dia da compra, para a minha surpresa, encontraram uma e única unidade do mesmo produto, o mesmo netbook, a mesma marca, o mesmo modelo só que negro! Todo preto, um pretinho básico, pelo mesmo valor! Sorri de felicidade e disse para mim mesmo:
- Azul jamais! Jamais!
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DicaS da semana:
METEGOL (filme) (http://www.youtube.com/watch?v=IrkXz0LQpl0) – Do diretor Juan José Campanella de “El Secreto de Sus Ojos”, o primeiro filme animado argentino, “Metegol”, em somente quatro dias foi visto por 418.000 pessoas! É a melhor estreia de um filme argentino desde que existem registros! Incrível, não? Imperdível também...
Facturas com Mate (http://goo.gl/MPQIRR) – Com o frio que faz na Capital Porteña – inclusive com risco de neve esta semana – a dica é ir à padaria ou confeitaria mais próxima e pedir uma porção de facturas. Todos sabem que os doces argentinos são ótimos e as facturas são uma variedade de massas doces que foram introduzidas pela imigração europeia. As mais comuns são as tortas negras, medialunas, vigilantes, suspiros de monja, cañocitos de dulce de leche, etc... Para acompanhar, o tradicional mate! Pode disfrutar sob o sol sentado na grama de um bosque ou no conforto de casa com a pessoa amada, combinação ideal pra espantar o frio!