As areias nuas do mar
Vários sóis já se passaram desde que terminei a releitura do romance “Iracema”, de José de Alencar, meu ato mais nostálgico imediato ao retornar de Fortaleza, cidade dos verdes mares bravios e belas areias nuas na terra “onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba”. Premido por indolência mais que por atividades profissionais e acadêmicas, não me tinham acudido ainda a verve e a oportunidade para escrever a crônica que, paradoxalmente, tanto desejara.
Foi, com efeito, uma vontade quase mal-agradecida amoldada no excesso de zelo que deveras me impediu de cronicar esse tempo todo, conquanto todos os dias desejasse fazê-lo, notadamente ao acordar e ver o sol marabaense do mês de maio, sempre mais belo e convidativo a discorrer sobre "os pequenos assuntos da alma". Vejam, pois, que aqui me utilizo – propositada, mas quase forçadamente – de palavras de José de Alencar e da musa cearense de nossos dias, a belíssima escritora Ana Miranda.
Impossível para mim não o fazer, seja pela minha pobreza de expressão, seja, antes e acima de tudo, pela riqueza com que se expressaram esses dois escritores cearenses a quem tanto admiro, romancistas e cronistas da maior expressão literária filhos da terra de Rachel de Queiroz, embora de tempos diferentes: Alencar, do século XIX, Ana Miranda, dos nossos dias. Amo a ambos, profundamente, como amo a Rachel, nossa imortal de tantas belas páginas!
Faço-me entender mais claramente, identificando aquilo a que aludi. Sim, o faço para compreensão do leitor que porventura (não confundir jamais, por favor, com “por ventura”) não me compreendeu ainda. Alencar faz poesia em riquíssima prosa, falando de areias nuas do mar, juriti, rola, jandaia, nambu, jacus, pacas e veados, bambus, palmeiras e tantas outras belezas naturais. Aninha – como atrevida e carinhosamente ouso chamar –, semelhantemente, tanto pela beleza de expressão literária quanto pela erudição e competência mesma, também o faz. Ela soube, sabiamente, encontrar na revista “Caros Amigos”, em anos recentes, como no jornal “O Povo”, nos dias atuais, “um lugar para os pequenos assuntos da alma”.
Rachel de Queiroz, nossa primeira imortal, também o fazia, com beleza singular, nas páginas da revista “O Cruzeiro” e de outros periódicos da grande imprensa em todos os seus dias. É o Ceará, fazendo jus à poesia da etimologia de seu nome (“canto da jandaia”), a encantar literariamente a nação toda pela palavra de seus filhos ilustres. Os pequenos assuntos da alma de Aninha nunca foram pequenos, são grandiosos! Que o diga, com o conhecimento de causa, quem leu “Deus-dará”, livro que reúne as crônicas da “Caros Amigos”.
Amei conhecer, embora muito rapidamente, a cidade de Fortaleza. Quem me dera o tivesse feito houvesse bem mais tempo! Não faz mal, contudo, tê-lo feito somente agora. “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu”, diz Salomão, no “Eclesiastes”. Consolo-me. “Tudo passa sobre a terra”, diz Alencar, no último parágrafo de “Iracema”.
Não posso deixar de registrar que estava comigo a Câmelha, minha mulher, e que Fortaleza é também a terra de Vicente Carneiro da Silva. Vicente – que, no Facebook, é Vicente Amador – foi professor de Português meu e dela de ensino médio, lá em Xinguara, há alguns anos cada dia teimosamente mais distantes, quando já éramos namorados. Não pude abraçá-lo pessoalmente desta vez, mas, é claro, conversamos ao telefone durante quase uma hora, como não raro eu faço com amigos e parentes.
Foi bom demais ver bem de perto, ainda que por pouco tempo, as areias nuas do mar de José de Alencar, Rachel de Queiroz e Ana Miranda, areias nuas do mar que também são, com efeito, de alguns dos meus ancestrais: meu avô materno, único avô que conheci, era piauiense, mas filho de cearenses. Está explicada a paixão que imediatamente passei a nutrir por aquelas areais nuas: tudo estava atavicamente guardado, porque meu ancestral, no passado não muito distante, veio de lá.