Ratos e urubus
Nasci e cresci em um lugar onde ninguém se preocupava em fechar as janelas de casa quando ia dar uma passadinha na casa do vizinho, ou ver se as portas estavam bem fechadas na hora de ir dormir. Não colocava a mão no bolso pra ver se a carteira continuava lá quando se estava no meio da multidão e nem mesmo ficava assustado quando se via uma multidão correndo. Nunca me joguei no chão ao ouvir estourar rojões em noite de São João ou quando passava um velho calhambeque pipocando o motor. Meus carnavais foram sempre tranqüilos, apenas uma briguinha ou outra por causa de uma garota exibida ao lado de um cara enciumado. Às vezes andávamos sozinhos para distrair, podia-se sentar em locais ermos até, com a namoradinha, sem correr o risco de ser assaltado.
Mas tudo mudou. Como mudam as estações, o clima, o curso dos rios e dos riachos, o vento e as pessoas. Mudanças são previsíveis, o que nem sempre se pode prever são as conseqüências. Essas sim, às vezes são devastadoras e irreversíveis. Minha pequena cidade cresceu e não voltará mais a ser pequena, como eu fui criança e jamais voltarei a ser bebê. Mudanças previsíveis.
Nossas portas e janelas não podem mais ficar abertas como antes, tenho de me preocupar com minha carteira, com quem senta ao meu lado no ônibus, com o pipocar de fogos. Meus carnavais já não mais tranqüilos, não tão calmos. Ratos e urubus estão à solta, esperando o momento oportuno, ou tentando criar esse momento. Golpe do telefone, guerra de traficantes, falsos profetas, violência no trânsito, nas ruas, nas escolas, nos lares...
Por que cresceu minha cidade? Por que tudo mudou? Por que minha memória é tão implacável? Melhor seria esquecer tudo isso. O passado. O passado que jamais retornará. Relembrar às vezes é doloroso; e cruel. Reabre uma cicatriz; cria uma nova. Apegamos-nos às lembranças que marcaram nossas vidas e nos fizeram felizes; reviramos as gavetas do tempo tentando encontrar, no fundo de nossas lembranças, algo que nos faça sorrir outra vez.
Temos de aprender a enterrar nossos mortos, e esquecê-los. Mas a nossa memória implacável faz questão de ressuscitar um passado que precisa descansar em paz.