A TRAMOIA DOS INSETOS

Quando o senso científico se sobrepõe ao senso prático, podem acontecer coisas estranhas. Desde criança sou vidrado em insetos de todos os tipos, sempre li coisas a respeito bem como assisti a muitos documentários. Sem nunca deixar de observar in loco. Cheguei a passar uma temporada inteira na casa de meu pai lendo uma instigante coleção em fascículos que tratava do tema. Meus insetos prediletos são os vaga-lumes, acho-os uma obra-prima da Natureza, principalmente os que emitem luz no local onde seriam os olhos. Pô, o bicho emite luz fria!

Ontem, pouco antes de dormir, fui ao banheiro escovar os dentes. Logo após atravessar a soleira da porta, percebi uma movimentação atípica dentro do box com a pontinha do meu olho direito. Reparei se tratar de um inseto de rápida movimentação. Abro o box e vejo uma espécie de lacraia que nunca tinha visto antes. Sei que era uma lacraia pelas características do corpo segmentado terminado num tipo caudal proeminente e pelo comportamento. Era bem magricela, cerca de dez centímetros de comprimento, de um laranja empalidecido bem arrojado, de fazer inveja a muita cor de carro por aí. Assim como o esqueleto externo metalizado de certos besouros.

Quase todas as pessoas de meu conhecimento instantaneamente veriam uma forma de exterminar a lacraia intrometida. Eu sempre espero antes para tomar uma decisão como essa. Mas se fosse traça ou barata, daria o meu adeus instantâneo.

Fiquei tão fascinado pelo design e pelo comportamento inteligentíssimo da lacraia laranja, que acabei me esquecendo do senso prático. Sei que desde o primeiro momento de nosso contato ela já tinha me percebido, lacraias tem a percepção muito refinada. Logo ela disparou o instinto de conservação. Na falta de condições de escalar os azulejos, a danada se escondeu no trilho do box, que tem forma de abóbada alongada. Aí se tornou impossível alcançá-la. Pela beleza dela até iria salvá-la, já estava pensando num pote, mas antes iria dar uma boa observada, para depois soltá-la num terreno baldio. Justamente por serem muito perceptivas, lacraias tem medo do ser humano, num banheiro pode ser perigoso, num terreno baldio, inofensiva. Basta não pisarmos em cima dela, né? Mas daí não tinha mais jeito, precisaria usar o inseticida. Uma coisa é admirar os insetos, outra é ter uma lacraia nervosa perto da sua cama. Pior é ter lembrado de que não temos inseticidas no momento; no mais das vezes eu enxoto os insetos para fora.

O jeito então foi calafetar a porta do banheiro e esperar amanhecer. Quando terminado o serviço, não é que me deparo com o maior inimigo dos bauruenses pousado bem na parede ao lado da cabeceira da minha cama? Era um terrível mosquito da dengue. Comecei a rir com pensamentos de que o mundo dos invertebrados estivesse de tramoia. O Aedes é um tipo de inseto que não dá para enxotar. Calculei o ângulo da chinelada e...

O contato com o mundo dos insetos sempre me rendeu boas risadas. Certa vez, enquanto lia o livro três da coleção “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (uma coleção pra lá de nonsense), comecei a escutar o característico zumbido dos pernilongos. O estranho era a intensidade do zumbido. A intensidade atípica estava explicada: não era apenas um pernilongo, mas dois descrevendo órbitas paralelas. Deixei o livro de canto e voltei meus olhos àquela cena. O motivo da risada dessa vez foi o encontrão dos dois pernilongos em pleno voo. Isso mesmo, eles trombaram no ar e deram, cada qual, uma avariada na rota. Soltei um NOSSA. Entrando no espírito nonsense do livro me pus a imaginar, tal um Pascal depois da gripe, qual seria a probabilidade cósmica daquele evento. Nunca se sabe se podemos tirar algo útil de uma cena dessa, porque alguns dizem que o plano cartesiano foi inspirado ao René Descartes após ele ter observado o posicionamento de uma mosca. Talvez seja uma meia-verdade, acontecida na fase de incubação do processo criativo. Vai saber...

O mundo natural tem muita coisa a serviço da inspiração, por isso sempre comento com o pessoal que faz administração: áreas verdes, muito verde deveríamos encontrar numa empresa. Funcionou da Academia de Platão ao Google, não há razão disso ser um equívoco. Talvez seja até fundamental para o processo criativo dos seres humanos. Por isso, chineladas, só em alguns casos.