Capítulo 07
A academia Must Fight ficava numa região de periferia, não era incrementada como as academias dos bairros mais nobres, mas era grande. Fora construída num antigo galpão e era mantida por um vereador local. Não havia mensalidade, mas o professor só treinava quem o ele quisesse, ou seja, quem realmente estivesse disposto á se machucar. Na academia havia uns cinco sacos de areia grandes, daqueles de setenta e cinco quilos, havia no centro, um grande ringue, feito com quatro escanteios acolchoados e correntes ligando-os e impedindo que os lutadores caíssem fora dele. Dentro do ringue, havia dois lutadores, um negro com shorts vermelhos e luvas pretas, aquelas luvas utilizadas em vale-tudo, que permitem livre mobilidade dos dedos para chaves e agarradas. O outro lutador era um branquelo ruivo com shorts pretos, ambos estavam sem camisa e descalços, mas os pés protegidos por ataduras.
O combate era para ser violento, ambos deveriam aplicar chutes e socos contra as costelas, canelas, joelhos e cabeças. O treinador, um homem moreno de cabeça raspada sempre com óculos espelhados observava os dois com os braços cruzados. Os dois até agora só acertavam chutes ineficientes contra as coxas um do outro e, na maioria das vezes contra o ar, eles andavam em círculos, mais com medo de avançar do que por estarem estudando um ao outro. A luta ficava cansativa, até que o negro resolveu avançar contra o branquelo e esse lhe acertou um chute contra as costelas que lhe fez perder o equilíbrio e encostar-se às correntes. O branquelo não avançou.
- Parem. – falou o treinador. Os dois pararam e olharam para ele, ofegantes.
- Eu já disse isso outra vez e vou repetir – falou ele calmamente – Um: se vocês ficarem chutando o vento, vão desperdiçar energia e não chegarão á lugar algum. Dois: venha me chutar, Fred, como aconteceu na luta de vocês.
Fred, o branquelo ruivo olhou para os lados, agora a academia toda tinha parado para ver a demonstração do treinador, todos adoravam ver a técnica do treinador, que sempre aplicava com perfeição e potência.
- Vamos! – disse ele em tom um pouco mais alto.
Fred chutou-o ao mesmo tempo que ele avançava, levando o potente chute do garoto nas costelas, mas conseguindo agarrar a perna do garoto e com uma alavanca, derrubando-o no chão e montando em cima dele. Fred que chegava a ser maior do que o treinador não conseguiu reagir á tempo disso tudo. O homem que o dominava fez menção de soca-lo na cara e ele apenas colocou as mãos para se defender. O treinador se levantou e ajeitou os óculos. Engraçado, nenhum dos alunos nunca havia visto seus olhos, era como se os óculos encaixassem perfeitamente na cabeça redonda e careca dele.
- Como eu havia dito – recomeçou ele, ajudando Fred á levantar-se e olhando para todos através dos óculos espelhados – nunca se leva um chute com os pulmões cheios de ar. – parou um tempo para que todos prestassem atenção no que ele dizia – um lutador sempre avisa aonde ele vai chutar ou socar com uma inclinação lateral, até mesmo em um jab, e é pra isso que estamos treinando: pra que vocês possam adivinhar de onde o golpe virá, e possam tomar a devida providência. – todos prestavam atenção no treinador, todos ali lhe tinham como um pai, a maioria esteve envolvida com o tráfico local e a marginalidade, mas esse treinador os acolheu e tratava á todos como filhos enquanto a sociedade os renegava – Não me interessa aonde vocês assistiram vale-tudo, aqui eu ensino diferente! Vocês não estão aprendendo uma arte apenas para entrar num ringue, estão aprendendo á se defender de todo e qualquer tipo de ameaça, seja contra um punho, uma faca, contra uma arma de fogo ou qualquer tipo de instrumento. Uma coisa é certa: sem coração, não há vitória!
Todos estavam voltados para o treinador, aquele homem sabia o que falava, passava confiança aos garotos que nunca antes souberam o que era isso.
- Onde estão suas armas Joel? – perguntou ao garoto negro que lutara com Fred. Ele hesitou, essa era uma pergunta bem diferente, mas o treinador era cheio de mistérios e ele sabia que poderia errar, ninguém nunca acertava as perguntas dele.
- Aqui treinador – disse ele levantando os punhos.
O treinador olhou para dentro dos olhos dele, mas Joel não sabia para o que ele olhava através dos óculos espelhados. Todos prestavam atenção nos dois.
- Não garoto – disse ele com calma e serenidade como um pai fala á um filho, depois olhou para a platéia de alunos e levantou o tom de sua voz – punhos e pés são apenas instrumentos, nossas armas estão aqui! – disse ele apontando para o peito – porque sem coração, sem vontade, ninguém vence nada nessa vida... e aqui – disse apontando para a cabeça – porque só vontade não basta se você não souber como fazer. – ele deu tempo para que os garotos entendessem sua mensagem, então fez bateu continência para eles e disse a frase que sempre encerrava suas aulas: Força e Honra, garotos!
- Força e honra! - Repetiram todos eles em uníssono.
A maioria deles foi para o vestiário, tomar uma ducha, o treino durara mais de duas horas e estavam exaustos. Como havia apenas quatro chuveiros, eles revezavam-se, ao todo eram quatorze, mas apenas treze estavam lá. Joel permaneceu no ringue para falar com seu treinador.
- Treinador William – falou – eu estava pensando no campeonato nacional que vai ter mês que vem. Tava a fim de me preparar melhor e tal... Não sei o que o senhor acha, mas eu me sinto preparado e...
- Você acha que está preparado? Você tem noção de que são lutadores de todo o país que estarão aqui?
- Sim, eu acho que to preparado, mas só quero me inscrever se o senhor concordar.
- Vamos fazer o seguinte, disse o treinador tirando os sapatos, as meias e a camisa – se você agüentar vinte segundos de porrada comigo no tatame, eu digo que você ta preparado.
O garoto olhou-o, com medo e então baixou a cabeça.
- Talvez no ano que vem, treinador – disse consciente de que não estava preparado.
O treinador sabia que Joel estava preparado, e isso lhe deu muita raiva, mas era preciso, esse campeonato era pra valer, as pessoas acabavam aleijadas por falta de preparo, mas o garoto lutava bem e tinha garra. Ele também sabia que não poderia ser técnico do garoto, não podia mostrar-se em público. Guardava um segredo mais importante que seus olhos.
A escola chamava-se Leãozinho e admitia crianças até a pré-escola. Ani era adiantada e estava no jardim de infância, era uma garota inteligente, meiga e simpática, diferente da maioria, ela não tinha medo de nenhum tipo de animal, nem mesmo de sapos e baratas, que até mesmo adultos repugnavam. Ela tinha vontade de tocar tudo, e, devido ao excesso de coragem ou falta de conhecimento, uma abelha, ao ser tocada, irritou-se e picou-a na testa. A garota desatou á chorar e seu rosto inchou muito. Muitas pessoas pensam, pelo fato do grande inchaço, que a vítima é alérgica, mas Ani não era, senão, teria morrido de choque anafilático em alguns minutos, pelo fato de ser a primeira picada de abelha que ela tomara na vida, o seu organismo não estava acostumado á presença do veneno, e o inchaço apareceu, deixando toda a face da garota como uma bola rosa.
Talita foi à escola pegar a filha, ela estava preocupada, como toda boa mãe sempre fica preocupada quando é chamada no colégio por assuntos que envolvem seus filhos.
Ela dirigia um New Beetle prata, presente de seu pai no seu último aniversário. Estacionou o carro em frente á escola e entrou, tentando não demonstrar seu nervosismo. “não é nada” disse a coordenadora, mas mesmo assim, ela estava ansiosa. Ao chegar na recepcionista, ela logo perguntou onde ficava a coordenação, a recepcionista olhou-a surpresa, e então virou-se 180 graus, Talita viu a plaqueta: coordenação. “Óbvio que a coordenação fica lá, tonta!” xingou-se em pensamento e agradeceu a moça com um tímido e envergonhado obrigada.
Após quinze minutos de conversa e dois cafés, Talita estava bem mais calma e até ria com a coordenadora, uma garota recém formada que tinha pouco menos idade que ela. A filha estava sentada em um sofá, segurando a bolsa de gelo na sua testa, para desinchar o local da picada.
A coordenadora contava á Talita o quanto estava orgulhosa de Ani, “a garota é muito educada, não chorou mais do que o necessário, pediu licença ao entrar na coordenação, acompanhada da monitora, agradeceu quando lhe ofereceram água e a bolsa de gelo”.
- Impressionante – disse a coordenadora – as crianças nessa idade não tem toda essa educação, além disso, chorariam a manhã toda por causa de uma picada.
- Você não imagina quem a trás aqui pra escola – disse Talita rindo, pensando em Caio e Marco – eu tenho até medo do que eles conversam na frente da minha filha.
As duas riram.
- Eu sei o que é um “homem-cídio” – disse Ani.
- Um o que? – perguntou curiosa a coordenadora.
- Um homicídio – traduziu a mãe – no dia que ela aprendeu essa palavra, falou o dia todo, quase que eu cometi um.
As duas riram de novo. Depois de um tempo se despediram com beijos no rosto e um aperto de mão caloroso e alegre.
Talita colocou Ani no banco de trás do carro, pediu que a filha colocasse o sinto e Ani obedeceu, a cadeirinha dela tinha ficado no Vectra de Caio. Ajeitou os retrovisores e fiscalizou todo o carro, inclusive se Ani tinha travado o cinto... a única coisa que não percebeu era o homem dentro do carro no outro lado da praça, que deu partida e começara a seguir o New Beetle assim que este se pôs em movimento.
- Alô amor! – disse Talita, deixando recado na secretária eletrônica – a Ani teve um probleminha na escola e eu peguei ela, ta bem? Te amo! Até em casa. Tchau.
O New Beetle seguia por uma avenida movimentada pela faixa da direita á setenta quilômetros por hora, os carros ao lado passavam, na maioria das vezes, á noventa quilômetros por hora, porém, Talita tinha medo de dirigir á altas velocidades, ainda mais porque o carro era novo e ela não havia se acostumado á sua direção.
O dia estava chuvoso, como todo dia, nessa época do ano: sempre caía uma chuva. Dessa vez, graças á Deus, era uma fina garoa. Talita sentiu uma pontada na barriga, forte, como as cólicas que ela vinha sentindo á semanas. Só conseguiu pensar “meu Deus, agora não!” . E o carro se chocou contra um poste, que não matou as duas porque ela conseguiu apertar o freio antes de desmaiar pela dor. Ani desmaiou também, com o choque.
O carro que as seguia, parou atrás do dela, lentamente e o motorista saiu em direção ao New Beetle. Chegando, olhou para dentro e viu as duas desmaiadas dentro do carro, Talita tinha sido protegida pelo air-bag, a menina estava desmaiada, como um anjo dormindo, um anjo com a testa sangrando. Então ele fez o que estava completamente fora de seus planos: chamou uma ambulância e esperou até que ela chegasse, para então, pegar seu carro e ir embora.
Talita acordou assim que o socorro chegou, ela e Ani estavam bem, tudo não passara de um susto, graças ao freio, o carro atingiu o poste á apenas quarenta quilômetros por hora. Como o carro estava amassado, chamaram um reboque e pegaram uma carona na ambulância até o hospital, pois, havia risco de alguma hemorragia interna.
- Merda – xingou o homem que as seguira, tudo acabara de ir por água abaixo, ele temeu por um momento pelas duas e não podia seqüestrar uma mulher e uma criança feridas. Teria de ir diretamente ao detetive Caio.
Ele tirou e limpou seus óculos espelhados.