Histórias de ônibus: A pior viagem
Essa é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com fato real
é mera coincidência.
Todas as profissões têm códigos e sinais característicos que pertencem só a elas. Aquele tal de código “Q” dos rádios HT’s por exemplo! Quem não trabalha com aquilo jamais vai entender o que eles falam naquela língua extraterrestre inventada pra confundir os ouvintes de fora da profissão, e quando se é do Rádio da Polícia então? Aí que ninguém entende mesmo. Questão de segurança pública.
Outro dia entrei no ônibus indo pro trabalho e falei com a cobradora:
- E então, tá na boa?
Ela me respondeu com olhar taciturno:
- Não. Faltam duas ainda...
Confesso que fiquei calado ante a resposta dela.
Mas ela já sabia dessa minha mania de descrever as melhores conversas em crônicas e percebeu meu semblante de “não entendi nada” e começou a me explicar algumas expressões usadas pelos profissionais dentro dessa. maravilhosas máquinas de transportar coletivamente os trabalhadores brasileiros chamados ônibus.
- A “Boa” – disse ela – é a última viagem que a gente faz. É a hora de recolher o carro pra garagem e ir embora pra casa.
- A tá! Agora entendi, e qual é essa viagem? – perguntei sem nem ter noção do que estava perguntando, mas a resposta veio numa surpresa interessante.
- Essa é a “Prima da Boa”, ou a penúltima caçambada. Caçambada é o mesmo que viagem.
Aí começaram a surgir os códigos que mencionei no caput dessa narrativa. O primeiro código foi a “Boa” que descobri sem querer, num cumprimento jovial e inocente.
Os principais sinais são os feitos em silencio através daquele pequeno espelho retrovisor interno onde cobrador e motorista mantém uma conversa inteira de dezenas de minutos sem emitir palavra alguma. Quem já olhou para o pai ou para a mãe e entendeu através dos olhares o real significado daquele momento? Pois é.
E quando entra uma mulher Fe-no-me-nal no ônibus e eles se entreolham rapidamente dizendo furtivamente “ – Cara, olha que show?” e os outros ocupantes daquele grande veiculo automotor jamais saberão daquela interlocução?
Então, continuando. A minha amiga cobradora me disse outras formas de se comunicar. Tipo quando perguntei quantos passageiros eram transportados por dia e ela me disse:
- Cabem umas cento e cinqüenta pessoas na roleta numa viagem!
Eu quis dizer pra ela um jargão de um apresentador da televisão brasileira.
- Oh, louco! Como assim? Cabem cento e cinqüenta pessoas na roleta? Confesso que não entendi
- É porque, contando de final a final, ela gira entre cem e cento e cinqüenta vezes, ou mais. passam cento e cinqüenta pagantes na roleta numa viagem apertada. – Me explicou ela.
E uma viagem é igual à uma caçambada. Caçambada é cada uma das viagens feita de final a final, são quatro, cinco ou seis depende do trajeto se for uma viagem curta com duração média de trinta e cinco a quarenta minutos, conta-se de duas em duas, uma caçambada é igual à duas viagens. Se você nunca se sentiu meio que um entulho, não se preocupe, eles tem o maior respeito com os clientes do patrão.
Em Belo Horizonte, o cobrador tem uma nomenclatura muito peculiar. Ele é o “agente de bordo” pois sua função vai além de receber o valor da passagem e devolver o troco. É dele a função de marcar as viagens no cartão próprio para tal, de manter o “salão” limpo, de auxiliar os passageiros no desembarque – aliás, até fazem piada. Dizem que tudo na vida é passageiro, menos o cobrador e o motorista.
Um fato curioso é a última escala da noite, aquela das vinte e três horas e cinqüenta minutos. Essa caçambada é chamada de “Beiça”. É a escala que faz o motorista ou o cobrador ficar amuado, fazendo beicinho. A caçambada anterior à “Beiça” é a “Prima da Beiça”. A viagem posterior, já no dia seguinte que também pode ser a “Boa”, essa é a “Irma da Beiça”. São as viagens que ninguém gosta de fazer. A dupla escalada para a “Beiça” chega em casa pro volta das três ou quatro horas da manhã. A menos que eles tenham seu veículo próprio.
E tem uma caçambada que nem motoristas, nem cobradores e nem passageiros gostam de fazer. São aquelas caçambadas em que os chamados “pilas”, que são crianças e adolescentes que cometem pequenos delitos, são os pilantras de pequeno porte, indivíduos cheio de códigos e sinais que a maioria da população gostaria de não conhecer, entram no Ônibus e declara em alto e terrível som:
- Aê, cobrador, perdeu! É um assalto. Esvazia a gaveta, véio!
Por: Paulo Siuves