O signo do trabalho
De dentro da caixa de trabalho saíram vários cartões e dados. Aquele jogo, mais parecia um polvo, com tentáculos inquietos em busca de abraço. Neurinha perguntou à fada madrinha:
- Se cada pessoa tem somente um dom, por que da caixa saem tantos braços?
A resposta veio.
– Faça uma escolha, meu bem.
Com a certeza das crianças, ela escolheu ser artista. Talvez pintora, gostava muito de desenhar. Ou quem sabe, escultora? Lidava bem com argila na olaria defronte de casa. Deixou meio soltinho, de modo que quando a oportunidade surgisse ela saberia.
Ressabiada com as pessoas, tinha uma condição. Que pudesse morar numa casa-barco. Assim, quando passassem a se aproximar demais dela, levantaria âncora e partiria para outro porto.
Seguiu estudando. No colégio, teria que escolher uma área antes da matrícula do segundo grau, como se chamava o ensino médio naquela época. Escolheu saúde. Amava livros, insetos e plantas, poderia ser uma cientista. Ainda se manteria isolada das pessoas, dentro de um laboratório.
Mas eram tantas alternativas. Engraçou-se de um piloto, passando, então, a querer ser aeromoça. Maquiada, uniforme azul-marinho e branco, lenço no pescoço, elegante e linda! Infelizmente, em casa a profissão era vista como coisa de moça da vida.
Concluído o ensino médio, Neurinha, com 15 anos, fez curso técnico de laboratório. Precisava de uma profissão que a sustentasse durante os anos de faculdade. Era o momento de explosão da AIDS! Surgia o medo de lidar com sangue e outros fluídos humanos. Não emplacou.
Ainda de brincadeira, prestou o primeiro vestibular para letras. Não passou. Esqueceu-se do assunto. Nos anos seguintes deu início aos cursos de enfermagem, nutrição, terapia ocupacional. Por um ou outro motivo, o entusiasmo inicial era substituído por enfado tamanho, sempre justificado por uma desculpa plausível.
O setor em que Neurinha trabalhava no hospital fechou. Aproveitou e foi para novo porto. Ali pensou em fazer vestibular para psicologia. “Precisava se entender”. Esta era a frase da época. Passou a estudar com uma conhecida, que queria prestar vestibular para direito. Se a colega passasse com a ajuda dos estudos, Neurinha ganharia um bom dinheiro. Na última hora, inscreveu-se para o curso de direito, profissão que jamais lhe chamara atenção, nem sabia para quê existia. Depois, mudaria para psicologia.
Não houve necessidade de fazer as matérias do básico. A paixão surgiu nas primeiras aulas do curso noturno. Aprendeu que tudo na vida tem pelo menos duas formas de se apresentar, segundo o ponto de vista do autor ou do réu. Não existindo meia faculdade ou meia profissão, decidiu se formar, e dali a dez anos rever sua escolha. A colega nunca se formou.
Se os dias são lentos, os anos passam voando. Não é que Neurinha se viu questionando o que fizera da vida? Surgindo do seu passado de menina séria, lembrou-se da caixa de trabalho. Jogando os dados para cima, invocou um arremedo de fada madrinha.
- Por que nos dão tantas opções, se estas só atrapalham e não nos deixam escolha?
Quando se pergunta com convicção, algo nos responde. Leu em Descartes algo mais ou menos assim:
- Escolha, não é só o arranque inicial. Podemos querer tudo, mas não podemos ter tudo. A permanência também é uma escolha. Não há certo nem errado se persistirmos fiéis no caminho escolhido. Ao final não seremos os mesmos, sairemos transformados.
O signo do trabalho é cuidar do outro. Amor que nem sabemos que praticamos, pensou Neurinha. Lembrou-se da proximidade da aposentaria, quando poderia fazer outra escolha genuína, tão logo soubesse...