DE PASTOR A JARDINEIRO
O vocábulo pastor já foi muito bom para representar o oficio sacerdotal, uma boa metáfora. O pastor cuida das ovelhas, as ama a ponto de arriscar sua vida por elas. Está sempre vigilante, leva-as para pastos verdejantes e às águas tranquilas. Seu cajado é proteção e consolo. Tudo isso é verdade e é bonito.
Mas hoje acho que precisa ser revisto ou até mesmo poderia ser trocado por outro mais adequado, que tivesse mais força para simbolizar as funções de cuidado, ensino, orientação e ser referência para uma comunidade de fé. O termo pastor está tão desgastado que parece ninguém lembrar mais porque foi tão significativo no passado. Hoje, quando falo que sou pastor, as pessoas criam uma repugnância visível, dá a impressão que somos suspeitos de charlatanismo, intolerância, dominação, ladrões, enganadores e coisas do tipo. É uma sensação horrível.
O que aconteceu? Pergunta fácil de responder. Muitos pastores, ou falsos pastores, contribuíram para a alteração do conceito que tinham os ditos “homens de Deus”. Escândalos financeiros, exploração, manipulação e abusos, inclusive sexuais, praticados por vários clérigos, distorceram completamente a imagem de homens sérios e confiáveis que desfrutavam na sociedade, de sorte que, hoje ser chamado de pastor é constrangedor em algumas situações.
Atualmente, acredito, que a palavra “pastor” não lembra mais a palavra “cuidado”, mas sim outros aspectos que são inerentes ao oficio do pastor de ovelhas, como por exemplo: o pastor vive do rebanho, seu gado é seu alimento, e a lã o seu lucro. Ovelha doente é sacrificada, ovelha teimosa é castigada, presa, amarrada, abatida. O pastor engorda a ovelha para a poda ou para o abate. Ovelha que não dá lucro é descartada.
Assim, ontem o pastor era visto pelo lado do cuidado e pelo amor às ovelhas hoje é visto pelo lado da exploração mercantil e da dominação.
Pessoalmente, essa figura do pastor de ovelhas é distante de mim. Sou urbano, não tenho familiaridade com o gado.
Permitam-me fazer uma proposta:
Amo as flores, amo as plantas. Quanto viajo coloco no roteiro visitas a Jardins Botânicos, Jardins, bosques, parques ecológicos, etc. já passei um dia no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, em Buenos Aires fui ao Jardim Botânico daquela cidade. Fui visitar os Jardins de Luxemburgo e os Jardins do Palácio de Versalhes na França. Estive em lugares assim no Chile, Portugal e em outras cidades por onde andei. Sinto um encanto por esses seres tão dóceis, lindos e poéticos.
Moro no Parque do Cocó em Fortaleza, um grande jardim, o maior jardim urbano da América Latina. Sinto-me responsável por ele. Curto o parque. Corro ao seu redor, sinto o seu cheiro, contemplo a sua beleza, arrebata-me.
A figura do jardineiro está mais próxima de mim. Adoro jardins. Acho que poderíamos empregar melhor o termo Jardineiro para o sacerdócio e retirar o de pastor. Justifico:
O jardineiro cuida de suas flores e plantas para deixá-las mais bonitas e não para o abate. O objeto final do trabalho do jardineiro é a beleza e não o lucro. Seu prazer é contemplá-las, sentir seu cheiro, tocá-las e experimentar a paz, a harmonia.
Há mais sensibilidade e delicadeza num jardineiro com uma tesoura que num pastor com um cajado. Há mais violência num pastor com um cajado que num jardineiro com uma tesoura. Apreciar um grande jardim traz a sensação de graça, formosura e encanto. Já apreciar um grande rebanho de ovelhas pode dar a sensação de riqueza e poder.
Um jardineiro de coração ama todos os jardins e não só o seu. Ama todas as flores e não só as suas. O pastor já se sente entediado com seu próprio rebanho.
O jardineiro é um sonhador. Um tipo meio louco que conversa com as flores, com o chão, com a chuva, com o sol. Um meio louco é um poeta inteiro.
O trabalho do jardineiro é delicado, escrupuloso e apaixonado, está sempre pronto ao afeto. Assim como deve ser quem se propõe a cuidar de gente. O pastor é tenso, seu olhar, em sentinela, não descansa. Ele é pragmático, está sempre pronto para a batalha.
Alguém já disse que “Não visitamos um jardim para ver o jardineiro” e é verdade. O jardineiro não quer ser visto, ele quer que vejam suas flores. No jardim, a figura do jardineiro não é importante de se ver, mas no rebanho a figura do pastor tem que ser ostensiva, com cajado, funda e pedras nas mãos.
As intervenções do jardineiro nas plantas são seguidas de espera por reações das mesmas. São apostas, são caminhadas, são atos de fé. Assim como é cuidar de gente.
O Jardineiro é uma pessoa de fé. Ele acredita nas flores. Acredita que elas são capazes de serem bonitas. Ele olha para as flores e plantas com simpatia. Cuidar de gente também deve ser assim.
Deus criou os seres humanos num jardim e fez deles jardineiros. Em Genesis 2:8 a Bíblia diz: “Depois o SENHOR Deus plantou um jardim na região do Éden, no Leste, e ali pôs o ser humano que ele havia formado” e depois disse que cuidassem do Jardim e que dessem nomes a todas as coisas. Penso que, para os judeus, dar nome tem uma dimensão muito maior que nós ocidentais imaginamos. Dar nome seria o mesmo que dar sentido, atribuir valor, encher de significados cada animal, planta e tudo que fizesse parte do seu mundo. Eles foram feitos para serem jardineiros que dariam sentido e beleza a toda a criação.
Deus gosta de jardins, chamava-o de Paraíso.
Jesus gostava de conversar com seus discípulos em Jardins, no das Oliveiras principalmente. Quando Ele ressuscitou foi confundindo com um jardineiro. Deve ter ficado feliz. Jesus mandou que observássemos as flores, os lírios do campo, os pássaros, as figueiras, as vinhas, os campos. Comparou o Reino de Deus a plantação de pequenas sementes que crescem e se tornam arvores frondosas.
Se pudesse mudaria alguns versículos, onde tivesse pastor substituiria por jardineiro. Por exemplo: “Jesus é o Bom Jardineiro e o Bom Jardineiro dá a sua vida pelas suas plantas. Suas flores o conhecem, ouvem a sua voz, conhecem o seu toque”.
Outro: “O Senhor é meu Jardineiro e nada me faltará”.
Se for para o Jardim que queremos voltar, então por que não sermos jardineiros? Um dia voltaremos para o Jardim enquanto nosso corpo estará noutro.
E o melhor de tudo é que ser jardineiro não seria apenas um chamado para algumas poucas pessoas, seria uma vocação de todo ser humano, porque todos temos nossas flores e nossas plantas, que são pessoas do nosso relacionamento. Porque vivemos em um jardim, construindo novos jardins. Porque jardinagem é nossa vida de amor. Encerro com ajuda de Rubem Alves:
"O que é que se encontra no início? O jardim ou o jardineiro? É o jardineiro. Havendo um jardineiro, mais cedo ou mais tarde um jardim aparecerá. Mas, havendo um jardim sem jardineiro, mais cedo ou mais tarde ele desaparecerá. O que é um jardineiro? Uma pessoa cujo os sonhos estão cheios de jardins. O que faz um jardim são os sonhos do jardineiro".