Essa Noite Não

Essa noite não

"A cidade enlouquece sonhos tortos,

Na verdade nada é o que parece ser

As pessoas enlouquecem calmamente

Viciosamente, sem prazer.

A maior expressão da angústia

Pode ser a depressão, algo que você nem sente.

Indefinível.

Mas não tente se matar,

Pelo menos essa noite não..."

(Essa noite não - Lobão)

Hoje pela manhã, um jovem se jogou da plataforma do metrô Barra Funda em direção aos trilhos. Acredito que apenas a altura entre ele e o chão já seria o suficiente para tirar-lhe a vida, mas suponho, pela história que vou descrever, que ele não queria errar dessa vez. Escolheu se jogar no momento em que o metrô se aproximava da região de embarque e, mal dois ou três vagões começaram a apontar à plataforma, os passageiros que se preparavam para embarcar em direção à estação Itaquera do metrô viram a ansiedade em entrar nos vagões - e em conseguir um espaço bacana para encostar as costas, ler um livro ou descansar as pernas doloridas em consequência do esforço feito ao garimpar um fragmento de espaço dentro dos trens e ônibus da Grande São Paulo - dar lugar ao susto, ao medo e ao choque de ver um corpo cair diante de seus olhos e ser, em seguida, esmagado pela gigante toupeira veloz e tecnológica, coberta de metal, que circula pelo subsolo da metrópole paulista.

Cheguei à estação no exato momento em que as pessoas corriam em direção os parapeitos do local para observar. A pressa dos que estavam ali, seguindo em direção ao trabalho talvez, como eu, deu lugar a curiosidade, a apreensão, ao medo, talvez a tristeza... Não sei. Sei que todos estavam parados, olhando. Eu fugi do fluxo estático e segui meu religioso caminho até a mesma escada de sempre, cheguei à plataforma e ali estava o trem vazio, ocupando menos da metade da área de embarque, funcionários correndo desesperados, de um lado para o outro, uns com as mãos sobre a cabeça, outros com o rádio na mão, enquanto uma voz, trêmula e emocionada, dizia pelos alto-falantes: “Senhores usuários, os trens da linha vermelha sairão do metrô Barra Funda apenas por uma das plataformas, a mesma utilizada para o desembarque”.

A plataforma de desembarque estava ali, vazia, com um trem também vazio, de portas abertas, estacionado e esperando os passageiros que seguiriam viagem ou, talvez, esperando o desfecho daquela história: quem sabe não seria, no final de tudo, apenas mais um problema técnico, que depois de algumas horas se resolveria, trazendo apenas insatisfação aos que chegariam atrasados no trabalho e enfrentariam, além dos trens e ônibus, o metro também lotado e circulando a passos de formiga... Embarquei. Ao entrar no vagão sentei-me ao lado de um senhor, que aparentava ter seus cinquenta e poucos anos, cujo nome eu não sei. Ele conversava com a moça que estava sentada à sua frente: “foi um rapaz, ele deveria ter seus vinte e poucos anos, acabou de se jogar dali”. A moça, com um semblante de espanto, disse conformada: “isso é normal, sempre acontece por aqui, mas é a primeira vez que eu estou por perto quando é aqui no metrô... Isso acontece muito em shoppings”. Inclinei-me a eles demonstrando ar de interesse pela conversa e perguntei:“ele se jogou?”, os dois fizeram que sim com a cabeça e a moça continuou:

“Sabe, eu sou lojista e... Vocês conhecem o shopping Higienópolis? - não esperou que respondêssemos e continuou - Então, eu trabalho lá (não me lembro em qual loja ela disse trabalhar). Vocês podem observar... Nos shoppings os seguranças sempre ficam perto dos lugares mais altos, perto das escadas, para evitar que esse tipo de coisa aconteça. Um dia, eu estava no trabalho e havia uma moça, uma menina que não deveria ter mais do que 15 anos de idade, ela estava em uma das partes altas do shopping, olhando para baixo. Acredito que ela havia brigado com o namorado, estava chorando. Da loja víamos que ela tinha pegado o celular e ligado para alguém, provavelmente para ele, avisando que iria se jogar. Depois ela desligou o telefone, subiu no muro e na hora um rapaz que passava por lá foi tentar segurá-la. Se ele a puxasse correria o risco de cair junto, pois o lugar ali é muito alto, então não teve jeito, ela se jogou ali, caiu lá embaixo e não sobrou nada, o que dava pra ver era só o sangue escorrendo... Era muito sangue, lembrou.

O homem então resmungou: “as pessoas não precisam fazer isso, se você terminou o namoro, acabou e pronto, cada um vai pro seu canto, ninguém morre por isso. Eu fui casado por 23 anos e acabei me separando, cada um foi pro seu canto. Hoje eu converso com minha ex-mulher, a gente sai junto, conversa, e cada um tem a sua casa. Mas aqui na Barra Funda já é a terceira vez que eu vejo acontecer uma coisa assim. Outro dia uma mulher se jogou na frente do trem. Acontece direto”, disse ao receber o olhar de aprovação da lojista que acrescentou: “mas as pessoas são muito fracas, é triste porque agora a alma dele, coitado, não vai para lugar nenhum... Ela vai ficar vagando por aí”...

O trem estava seguindo viagem por trilhos alternativos enquanto o diálogo acontecia. Eu, em silêncio, interagia apenas com gestos de surpresa e lamento por alguém que tinha decidido simplesmente colocar por um ponto final em tudo... Só conseguia pensar em pedir por misericórdia e, por conta de uma série de situações, conseguia apenas ficar triste com a situação. Mesmo sendo algo comum, como declararam meus companheiros de viagem, eu não estava acostumada a presenciar momentos assim, porque precisava ficar sabendo? “Mas que bom que eu não vi, que bom que eu não o vi caindo, que bom que eu não estava perto, que bom que eu não sei quem ele era”, pensei. Tive então meus pensamentos interrompidos pelo homem que estava do meu lado, ele replicava o recado que ouvira pelos alto-falantes:

“O metro vai parar aqui na Marechal Deodoro, teremos que descer para pegar o metrô sentido Itaquera, esse trem aqui vai voltar para pegar mais gente na Barra Funda”. Levantamos os três, as portas se abriram e descemos todos. Bastou isso para que me perdesse deles em meio à multidão. Não éramos amigos, não nos conhecíamos. Reunimo-nos apenas uma vez na vida (talvez) para falar de alguém que não sabíamos quem era, que não sabíamos o que tinha vivido, lembramo-nos de algumas pessoas dentro do mesmo contexto e tomamos, quase que involuntariamente, a liberdade de nos inserir na história que ilustrou mais esse triste fim. Subi as escadas da estação, em sentido contrário aos que brigavam por uma vaga no próximo metrô. Fui para a rua, entrei em um ônibus e dei continuidade ao meu trajeto que, ao invés de levar 15 minutos, durou 52. Hoje um pequeno atraso no caminhar da minha vida e das minhas atividades custou a vida toda de alguém, e, o que eu pude fazer além de seguir meu trajeto cantarolando a música "Essa noite Não", do Lobão? Nada.