( imagem tirada em 2011 do velho cinema em minha cidade. Hoje ele está bem pior)
 
 

UMA SAUDADE NO BRILHO DA TELA
 
 
               Percorro meu olhar pelas esculturas do velho cinema que a era atual vê morrer. Ainda sobra a memória dispersa que meu olhar tenta descobrir no seu interior que há muito deixei de entrar. A mesma memória, desmedida e atrevida me faz voltar a ele, embora o presente não refaça o passado e cada sonho que deixou de brilhar em sua tela.  Mas eu me vi lá dentro. Eu e outros tantos de mil sonhos diferentes a olhar a cortina vermelha que separava a realidade do sonho. Ainda guardo esta cor escarlate que se abria junto com as batidas do coração depois de três toques.
 
                Abria-se a cortina quais as brumas pesadas que desaparecem depois de uma tempestade e um céu iluminado pelo sol aparece. Calavam-se os lábios diante da tela enorme que envolvia a emoção. Apenas sussurros ou risos perdidos habitavam o mundo de mágica que se fazia. Talvez um beijo roubado ou uma mão que deslizava sinuosamente na penumbra que não denunciava. O olhar estendido esperava viver outra vida no personagem que mais lhe aprouvesse.
                 Tantas vezes fiz parte desse mundo numa platéia anônima que admirava a órbita do cinema. Fui mais uma na penumbra que fitava os olhos na grande tela e se perdia na beleza escondida neste mundo de sonhos e ilusão.
 
                  Entre as lembranças que agora vagueiam na tela de minha mente, o desenrolar de “A última neve da primavera” ou “007, o espião que me amava”. O primeiro, eu assisti em uma noite de Natal e saí para a rua com o frio na alma; um frio marcado pelos últimos coágulos de neve da trama. A mágica da tela se estendera para a rua que se enchia daqueles que compravam os últimos presentes e se encaminhavam para a missa do galo. Aqueci-me na rua de luzes e pessoas, que assim como eu, olhavam as vitrines expostas. Sentia a garoa fina da chuva que fazia tremular as luzes e molhava os cabelos ainda castanhos. No rosto, apenas os sonhos, e o sorriso exposto de uma vida que vivia.
 
                “007, o espião que me amava”, eu assisti ainda mocinha e sonhei a noite toda com o sedutor agente secreto britânico vivido por Roger Moore. O rosto corava pelas lembranças das cenas quentes e umedecia o corpo em desejos retraídos. Era o tipo mais sarcástico e charmoso que fazia o peito arfar em suspiros. Ele tinha nos braços as mulheres mais lindas e sensuais. Suas mãos, além das carícias ardentes, manipulavam as armas mais modernas e matava a sangue frio e com charme. “Só ele tinha o direito de matar e possuir as mulheres mais lindas”.
 
                “O fenômeno Mazaropi, vivido por Amacio Mazaropi, foi um caso especial do cinema brasileiro”. Seu humor irresistível e simples de homem do interior prendia os olhos e trazia uma alegria que só o riso pode transmitir. Sua humildade o fazia viver a vida em toda a plenitude da beleza da alma de forma cômica e ingênua. Vi quase todos os seus filmes e lavei a minha alma no riso de sua comédia.
 
                      Os filmes de Bruce Lee, eu assisti a quase todos e nos braços daquele que hoje é meu esposo. Nada de romântico... Mas ele gostava de ação. E eu inebriava com ele nas histórias do famoso dragão que escolheu o Kung-Fu aos treze anos de idade e quis ser o melhor em artes marciais. Foi o melhor e viu sua perfeição se estender para as telas onde mostrava os efeitos dramáticos de sua técnica do “Jeet Kune Do”. 
 
                     Depois o cinema em minha cidade se fechou e junto com ele os sonhos mágicos que a tela transmitia. Quiseram ressuscitá-lo, mas os cômodos vídeos roubaram-lhe a cena e a penumbra de uma platéia deu lugar à comodidade solitária de um sofá. O brilho se perdeu e o prédio que outrora fora palco dos melhores filmes e dos sonhos mais bonitos está a ruir como toda a cultura dessa cidade. Da minha janela eu o vejo imponente, entretanto esquecido. A mágica que sinto é apenas a lembrança do que foi e da vida que agitava qual uma Hollywood interiorana.
 
                     Ainda que encham de histórias as telas do velho cinema, não há mais brilho que faça tirar a comodidade de um sofá e apenas algumas polegadas de tela. Infelizmente o romance, a ação, a comédia, a sedução e até mesmo a sacanagem que rolara nas suas telas não resistiram ao tempo e as mudanças que facilitam a vida das pessoas. O cinema, palco de sonhos e suspiros nada mais é que ruínas de sonhos que embalaram histórias. Histórias de um sedutor agente secreto imortalizado em James Bond e sonhado pelas garotas como fossem Bond girls; golpes de Kung Fu mostrando a filosofia do limite do corpo e da mente; risos travessos e nada mais.
 
                  Saudades! Está sempre tão perto! Embora o tempo seja de tão longe e não o podemos mais alcançar. Que sensação de frio me trás essas lembranças qual o frio que senti ao ver “A última neve da primavera”! O frio parece mais intenso agora porque vem junto com a saudade. Saudade do riso que escapava dos lábios, dos suspiros incontidos, da adrenalina que percorria o corpo inteiro em filmes de ação. Agora, apenas uma saudade no brilho da tela de minha memória me faz suspirar e a sensação de perda retratada ali é tombada qual a história do velho cinema de minha cidade. Só agora percebo que o cinema tem o sonho e a ilusão mais perfeita.
“... realidade demais pode nos fazer envelhecer”.
 
 
 
 
(Crônica escrita em 2005 em alusão ao velho cinema de minha cidade, espaço de tantas diversões e alegrias roubadas pelas telas da televisão. Em cidades do interior o cinema não possui força suficiente para competir com a televisão que existe até nos lares mais paupérrimos. Uma pena porque nada se compara  sensação maravilhosa que era encontrar amigos na praça do cinema e depois se envolver nas tramas da grande tela.)