QUERER É PODER

Ser disciplinado é atitude necessária, porém difícil de ser praticada, em vários âmbitos do nosso dia a dia.

Luto, comigo mesma, para conseguir que ela faça parte da minha vida, principalmente com relação a atividades físicas, imprescindíveis ao bem estar.

Os profissionais da área da saúde nos alertam, constantemente e, via de regra, não obedecemos a suas orientações. É o meu caso. Começo minhas caminhadas ao romper da aurora, prometendo a mim mesma que dessa vez vai ser para sempre. E até consigo, por determinado tempo, entretanto, viagens constantes, por “ossos do ofício”, me levam a permanecer, por algum tempo, em cidades diferentes. É aí que “a coisa pega”. É desculpa atrás de desculpa: prefiro andar pela manhã e “nessa cidade não dá” porque chove muito, “naquela” porque faz frio, em outra porque o sol é muito quente, porque... porque... e, por aí vai.

Envergonhada ,interrompo as caminhadas, constantemente, porque é caso de vergonha ser conscientizada e, ainda assim, ser indisciplinada. Fiz hidroginástica, por algum tempo. Desisti: a academia é longe, o horário disponível não me agrada, e lá vai desculpa!

Assim, continuo na tentativa de vencer essa dificuldade. Hoje, me decidi a recomeçar. Na noite anterior, deixei a postos minha roupa apropriada e tênis. O dia amanheceu e me vesti muito disposta. Fui calçar o tênis e não consegui; o calo na parte superior do dedinho me incomodou, começou a doer. Desisti do tênis e resolvi fazer a caminhada usando sandálias.

Abri a porta e estagnei: chovia fininho, num sussurro que não me permitiu perceber antes. Conversei com a chuva: Ah, nem que “ chova canivetes”, vou andar. Sei que você, chuva, é evocada, sempre, pois há muito sofrimento nesse sertão imenso, por falta de você aparecer. Mas, me desculpe, preciso andar. A chuva não me ouviu e continuou a cair. Não saí. Pingos de chuva na pele me causam alergia. O que fazer?

Arregacei as mangas e iniciei minha caminhada dentro de casa, numa “marcha soldado”.

O ponto de partida foi a sala de estar , onde eu já me encontrava. Passei pela cozinha, fui para a circulação ( jargão que engenheiro civil e arquiteto dá para a palavra “corredor”). Nela , os livros, na estante, me observaram, com sinal de interrogação .Fui para meu quarto e , na tela mediúnica de Antonio Francisco Lisboa (o Aleijadinho) dedilhada pela médium Neiva Gonçalves, os girassóis me olharam espantados. No quarto de visitas ( antigamente, de hóspedes), meus filhos, quando crianças, lá no pôster da parede, se pudessem falar, certamente, me perguntariam se eu estava me “sentindo bem”, eufemismo que evita a indelicadeza de perguntar “se eu estava boa da cabeça”.

A caminhada foi avante. Novamente, sala de estar, cozinha, circulação, quarto 1, quarto 2, área de serviço, repetidas vezes. Exceção feita para os banheiros. Eu não poderia me dar a esse “ luxo” para não interromper a sagrada caminhada.

O piano, silencioso na sala, sustentava o busto de Bach que adquiri em Milão e a miniatura de gôndola que eu trouxe de Veneza. Provavelmente, ele entendia o porquê de ficar esquecido, já que a saúde mental de sua dona parecia estar comprometida. Na circulação, jazia a velha bicicleta ergométrica, sentindo-se vingada pelo abandono sofrido há tanto tempo. E eu ali, andando, andando, entrando e saindo de cada espaço doméstico. Relanceei os olhos pela janela e lá ainda estava a chuvinha, a me pirraçar.

De vez em quando, ao passar pelo rack , na circulação, lá estavam expostos os DVDs de filmes indicados para colecionadores e CDs (antigos e atuais). Roberto Carlos me olhava com cara “do cara” que ele dizia ser. E como eu gosto dele e do “cara” que ele canta, perdia-me em devaneios, durante o caminhar. Mergulhei, também, através da imaginação, no enredo de algum dos filmes que ali estavam, e isso me ajudava a esperar o andar dos minutos.

Por fim, achei que já era tempo de parar minha via sacra. Olhei o relógio. Trinta e cinco minutos foram usados por minhas pernas e pés, ininterruptamente. Então, parafraseando um trecho da canção “Escultura”, gravada pelo inesquecível Nelson Gonçalves (acho que autoria de Adelino Moreira) que diz “... e assim, de retalho em retalho, terminei o meu trabalho”, eu digo: E assim, de passo em passo, terminei o meu propósito de caminhada, tempo mínimo recomendado pelo médico. E o que é difícil: cooper dentro de um pequeno apartamento.

Fiz jus ao provérbio secular: “Querer é poder”.

Lá fora, a chuva me olhava, sorrindo.

nadir andrade
Enviado por nadir andrade em 03/04/2013
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