Cemitério-de-pistóia


“Queres engolir um crocodilo?”

A fala é de Hamlet, exasperado com a dor espalhafatosa de Laerte à beira da sepultura de Ofélia. De fato, antes engolisse um crocodilo inteiro o pobre irmão da heroína, se queria chamar sobre si a atenção de todo o reino. Já o príncipe da Dinamarca, refém do papel de louco varrido em que se metera a fim de levar adiante o seu projeto de vingança, não podia permitir-se uma só lágrima. Sofria mais Hamlet, e não tinha como engolir sequer uma lagartixa.

Dia 17 de março vi de passagem em um noticiário televisivo o cemitério-de-pistóia montado na areia da praia de Copacabana para protestar contra a violência e pedir o fim da impunidade — centenas de mortes estúpidas, por assassinato e bala perdida, que têm enlutado cotidianamente o Rio de Janeiro, numa escalada de crimes sem comparação com qualquer outra época da história da cidade.

Organizou o ato a entidade carioca Rio de Paz (http://www.riodepaz.org.br), que reúne estudantes, profissionais liberais e parentes das vítimas da violência urbana, explicando com suas faixas negras por que estavam ali. Levaram o dia conversando com as pessoas que passavam alegremente pelo local, até serem capturadas pela visão daquelas setecentas cruzes de madeira fincadas na areia da praia, chamando a atenção pelo inusitado. As cruzes pretas representavam o número aproximado de assassinatos ocorridos entre nós nos dois primeiros meses de 2007. Quadro forte, silencioso, sem legenda para quem o divisava apenas de longe, um tapa sem mão na cara de todo mundo, incitando pelo choque e sua carga emotiva à participação popular.

Esse cemitério-de-pistóia não convida ninguém a engolir um crocodilo inteiro nem encoraja demonstrações exacerbadas de revolta contra as autoridades, os gestores da coisa pública, os responsáveis pela política de segurança no estado. Não. Ele apenas fica onde está, como uma advertência surdamente desesperada: não acordar de uma vez por todas para a necessidade de enfrentar o problema da violência urbana como prioridade imediata deixará a população carioca inteiramente à mercê do puro acaso.

Há uma certa loucura hamletiana recontada no gesto dos participantes dessa oportuna manifestação pública. Também eles são visitados, de alguma forma, pelos espectros dos seus mortos. Que não lhes pedem vingança, como o rei da tragédia shakespeariana. Talvez não lhes peçam nada. Eles é que não conseguem mais ficar indiferentes à situação deplorável a que chegamos e partem para o confronto com os nossos maus lidadores da res publica através da força insuperável do símbolo, sem hostilidade, claro, mas com a certeza de provocar na sociedade em geral espanto, conscientização e necessidade de cobrança diuturna aos homens colocados no poder pelo nosso voto de ações mais efetivas e mais inteligentes no combate à criminalidade galopante, sintoma de alarme de uma gravíssima doença social que precisa de cuidados mediatos e imediatos, mas sem onda política nem ideológica.

Pela importância do evento, o grupo de manifestantes era pequeno. Nós moradores do Rio temos o dever de juntar-nos a essa turma do bom combate. Nossos governantes precisam sentir plenamente que estamos todos à beira do insuportável. Que não há mais condições de aturar o clima de horror que tomou conta da cidade e que se espera deles a eficácia prometida em suas campanhas eleitorais.

Só há uma saída: agir, agir, e agir. E ainda agir.


22.3.2007