Custou-lhe caro a ousadia

Há dias, não encontrava Getúlio, com quem compartilho homéricas palestras. Esse meu amigo é advogado. Um dos melhores já diplomados pelas mais de quatro mil faculdades de ciências jurídicas, Brasil afora. No restante do planeta, pouco mais de mil escolas do gênero formam bons profissionais. Aqui, os rábulas egressos de escolas fajutas sequer conseguem inscrever-se na Ordem dos Advogados. Não é o caso do Getúlio, um jurisconsulto de escol, merecedor de minha admiração e amizade fraterna.

Getúlio é goiano. Embora nascido no Centro Oeste brasileiro, criado em Brasília, é um estudioso do folclore nordestino. Quando encontra um amigo no boteco do Luizão, saúda-o com versos da literatura de cordel, da qual exibe extenso repertório. O homem, na verdade, é detentor de vasto conhecimento. Fala de economia e política com a eloquência dos grandes mestres. Por isso, procuro-o com frequência, a fim de me locupletar de sua riqueza intelectual.

Em tarde de baixa umidade do ar e de elevada temperatura, encontrei-me com esse bom goiano na praça de alimentação do Iguatemi. Estava sentado, sorvendo generosos goles de seu chope gelado, quando cheguei interrompendo a leitura que fazia de livro sobre as falcatruas dos mensaleiros petistas e de seus apaniguados políticos. Ele é apartidário. Demonstra certa tendência esquerdista, mas, por ser honesto, repudia a ação politiqueira dos que se dizem defensores dos injustiçados socialmente.

Nossa conversa já consumira mais de uma hora. Falamos de tudo, até da vergonhosa atuação do Flamengo, time que ele e eu abominamos. Getúlio é torcedor do Botafogo, um esquadrão de pouca valia e cuja estrela solitária encontra-se sem brilho. Por isso, está propenso a torcer pelo Vasco da Gama.

As cinco cartelas arredondadas, com o timbre do chope de sua preferência, testemunhavam o quanto Getúlio havia bebido naquele início de noite. Cada vez mais falante, se dispunha a prolongar a nossa conversa.

Depois de demorado monólogo, pedi a Getúlio que me deixasse falar alguma coisa. Eu, àquelas alturas, já sentia a garganta arder de tanto escutar o meu amigo.

– Espera aí, Getúlio! Você já falou demais. Como disse Luiz Gonzaga, o rei do baião, em uma de suas músicas, você já fez até teatro. Portanto, escute-me.

Para descontrair, passei a relatar um acontecimento recente, entre dois velhos amigos, uma história que demonstrava o sentimento machista. Disse eu, finalmente:

– Marcolino e Jeremias, dois velhinhos residentes no Lago Norte, costumam se encontrar no Parque Olhos D´Agua. Ali, caminham entre as árvores, conversam asneiras próprias dos idosos, curtem a natureza... Enfim, veem passar o pouco tempo de vida que lhes resta. Por alguns dias, Marcolino deixou de comparecer ao costumeiro encontro matinal. Jeremias não sabia endereço nem telefone do amigo, por isso, aguardava ansioso o seu retorno ou a notícia de que Marcolino já se encontrava nos páramos celestiais.

Fiz uma pausa na minha narrativa, para beber um pouco da Coca-Cola, um tanto morna, sobre a mesa. Eu, ao contrário de Getúlio, era abstêmio. Nada contra os que bebem desbragadamente. Bom seria que o fizessem com moderação, como, a contragosto, recomendam os fabricantes de bebidas alcoólicas.

Continuei minha narrativa:

– De repente, Marcelino apareceu no parque, em dia bastante ensolarado. Jeremias, então, perguntou-lhe o que acontecera. O amigo respondeu que estivera preso. A moça da padaria, uma linda e deliciosa morena, o acusara de estrupo. O juiz o interrogara certo de ouvir a óbvia resposta de que era inocente. Afinal, o homem era octogenário. Daí... Não foi o que aconteceu. Marcelino declarou-se culpado. Diante do jovem Conselho de Sentença, não podia dizer o contrário. Naquela ocasião, mentira para si e para a autoridade judiciária. Aí, o juiz o sentenciou a trinta dias de cadeia, por falso testemunho.

Esperei que o Getúlio emitisse algum comentário sobre o que lhe havia narrado. Ele nada ouvira. Dormia sob o efeito do último chope.