BEAGLE – VIC
Deve existir em algum lugar um Deus que cuida dos homens e dos bichos também. Deve sim, e nos chama a ele quando acha conveniente. E das maneiras mais variadas arranjamos um modo de atender ao chamado inadiável. Há pouco, a cadela que dividia conosco a sua existência recebeu essa ordem para partir e, no afã de atender o seu dono supremo escolheu envenenar-se, conseguindo com presteza extrema chegar ao seu destino perpétuo e o seu corpo agora jaz em um canto quente de um terreno quase baldio.
A trajetória desse animalzinho em nossas vidas iniciou com o “chamado” de outra cadelinha, que há pouco tempo estava conosco e nos deixou desolados. Numa atitude de compensação, adotamos por compra um novo ser, no qual colocamos o mesmo nome. Era uma fêmea de três cores, focinho curto, pêlo fofo, orelhas caídas e com uma vivacidade incomum.
De imediato passou a preencher todos os vazios do relacionamento familiar de nossa casa, e ocupou sem concorrentes, o centro das atenções da comunidade onde vivíamos. Considerando a idade relativa, passamos a ter quatro filhos que brincavam e conviviam em um mesmo espaço, e assim cresceram, por seis anos. Nesse período tivemos inúmeras alegrias e juntos vivemos momentos inesquecíveis que agora, com mais força, povoam os nossos pensamentos. Avivam-se recordações das viagens das férias, dos finais-de-semana na praia e na montanha. Nas reuniões sociais fazia questão de parecer ”tapete”, no meio da sala, onde estivéssemos.
Chamava-se VIC, ou melhor, VICTÓRIA. Quando a “batizamos” pensamos reservar o apelido só para os íntimos, mas ela com insolência exagerada transformava a todos, num instante, em íntimos. Por isso ninguém conhecia a tal Victória. Desde as crianças até os mais velhos a estimavam e a tratavam por VIC, intimamente. Nunca conseguimos submetê-la a qualquer regra por imposição. Fizemos pactos e acordos para convivermos de bem, nós Meio-Cães e ela Meio-Gente. Ano passado ela nos fez crer que desejava filhos, então suspendemos o anti-conceptivo e ela teve quatro lindos filhotes, com grandes gemidos na hora do parto, bem de acordo com sua índole manhosa, que detestava sentir dor e gritava antes mesmo de senti-la. Foi mãe desvelada, amamentou e protegeu os filhotes de forma exemplar e no fim de dois meses quase, concedemos quatro adoções a parentes e amigos, que até hoje nos mandam notícias das peraltices e das fortes personalidades que possuem.
Ultimamente, confesso, tive pouco cuidado com a aparência dela e algumas vezes odiei lhe dar banho, para livrá-la do cheiro insuportável com que se impregnava de propósito, querendo chamar para si a atenção, que às vezes lhe faltava. Como retribuição a nós, pelo carinho recebido, nos brindava sempre após o toalete, com corridas, fintas e rosnados deliciosos cujos sons ressoam em meus tímpanos. Invariavelmente tentava sorrateiramente dormir embaixo de uma das camas e, a cada noite, repetia-se o esconde-esconde. Descoberta ia sob protestos para a área de serviço deitar-se sobre o seu colchão.
Foram muitas alegrias, muitos momentos marcantes. As reações de VIC sempre nos pareceram além do limite canino; sabia pedir água, comida, adivinhava quando estávamos chegando, nos acordava pela manhã. Quando íamos sair no carro, sempre oferecida, era a primeira a instalar-se confortavelmente junto à janela. Demonstrava nos entender, e tinha carinho especial pelos “irmãos”, por minha esposa e respeito por mim. Gostava também de mim, dedicava-me acenos de cauda e chegava-se com a cabeça para receber afago, mesmo após as broncas e castigos que sempre me cabiam aplicar. Não existiu uma única vez que nos visse chegando que não fizesse uma festa exagerada, como era do seu jeito, e não havia visita que não fosse acompanhada pelas escadas até o portão do prédio por ela, que sempre fazia às vezes de anfitriã. Devemos a VIC muitas virtudes que encontramos em nossos filhos e algumas mudanças de conceitos quanto ao tratamento a outros seres, aprendi com ela.
Hoje, quando pela manhã cedinho acordávamos, vimos VIC entrar casa adentro aos gritos, exageradamente. Tentava nos dizer que estava sem fôlego e correu, latiu, gruniu, saltou. Ficamos atônitos, sem ação, e aí ela saiu e deu voltas alucinadas em disparada correria, querendo viver, pedindo socorro aos seus. Quando consegui trazer o veterinário estava morta, ou melhor, tinha seguido viagem, imediatamente após ser chamada, do seu jeito exagerado de fazer e sentir as coisas.
Ao longo de nossa convivência sempre lhe tive carinho e dediquei certa atenção a VIC. Entretanto, concluo sem dúvida que a amava, como toda minha família também a amava.
Sei que foste chamada VIC, e a sua viagem tem finalidade nobre. Agradarás por certo, com o teu jeito exagerado, ao PAI, ao FILHO e ao ESPÍRITO SANTO...