A santa chorou sangue
A santa chorou sangue
Pequena estatueta de Nossa Senhora, vértice do crânio quebrado com toques de maestria e cuidado profissional. Tarefa aprovada pela Arquidiocese para ajudar aos religiosos periciando o fenômeno que se convertera em objeto de romarias, promessas ou oferendas sincronistas. Gotas de sangue brotavam dos seus olhos piedosos em intervalos infrequentes, porém extraordinários. Questões sobre a ação do prelado e acusações de charlatanice ou algo mais diabólico, até um prenúncio do fim do mundo, dividiam a opinião pública. Escrutínio da cavidade exposta não identificou nenhuma evidência, mesmo circunstancial, sugerindo intervenção humana ou malefício. Dúvidas e rumores persistiram, o bairro desfrutava de um raro momento de fama.
Devolvida pela igreja, voltou triunfalmente ao nicho no jardim da casa de um ex-combatente. Feira de milagres competindo com a feira livre e o mercado central. Caminhões, ônibus, cadeiras de rodas e até carrinhos de mão, transportavam diariamente a romeiros, enfermos e deficientes em busca de uma visão divina ou de uma cura milagrosa. Farejando as inúmeras oportunidades de negócios, ambulantes, barraqueiros e punguistas se estabeleceram em pontos estratégicos na periferia da multidão. Pipoca, cachorro-quente e refrescos servidos acompanhados de compras de relíquias ditas untadas com lágrimas milagrosas. Testemunhas oculares, pessoas amigas e adolescentes, estavam sempre disponíveis dando credibilidade ao fenômeno. Éramos uma delas...
Notamos algo brilhando nos olhos da estátua, um dia ao anoitecer. Soltamos o nosso primeiro grito de alerta – a santinha está chorando! Preces, gritos de aleluia, vários deficientes tentaram caminhar, outros anunciaram que suas queixas e dores haviam desaparecido instantaneamente. Pessoas aglomeradas entregando cordões de ouro, missais, santinhos e outra parafernália religiosa para expor diante da estatueta.
Choraram pelo mundo afora, desde então, outras santas. Nenhuma delas, ou os fenômenos, foi confirmada como milagrosa. Para nós, o final da história da santa que chorava lágrimas de sangue, aconteceu naquele dia maravilhoso que está bem distante no nosso passado. Descobrimos então o poder imbatível da fé, milagres ocorrem assim.
“A nossa santa padroeira chorou sangue... era Deus e beleza”.
Palmarí H. De Lucena é membro da União Brasileira de Escritores