143 – A CARTA ...
Um velho amigo recém-formado e recém-casado, de mudanças pra outro estado e querendo se livrar de alguns apetrechos me presenteou com vários livros que recebi alegremente na minha biblioteca, e cuidadosamente no decorrer da semana os fui colocando em seus devidos lugares, em todos anotei o nome do presenteador, mas ao me deparar com um livro de Homero, a Ilíada, notei que o mesmo possuía um marcador de páginas volumoso, estranho, e ao observar mais detalhadamente notei que não se tratava de um marcador, mas sim de uma carta, estampava no seu exterior vários decalques de flores, exalava um doce perfume, e não estava endereçada.
Durante alguns minutos fiquei com aquela carta misteriosa nas mãos, queimava em desejos de ler o que nela estava escrito, que segredos guardava, que confidências escondia, mas me senti constrangido em lê-la, e, cautelosamente a guardei em meio às paginas do referido livro.
Nos dias que se sucederam, eu me ardia de curiosidade sobre o teor daquela missiva, do que se tratava, o que guardava de tão confidencial, seria uma despedida de alguma amante?
Quanto mais o tempo passava mais e mais aumentava a minha curiosidade, por fim dando com os ombros para justificar a minha decisão, fui ler o conteúdo daquela tão misteriosa missiva.
Com a carta nas mãos, metade de mim pedia insistentemente que eu a lesse, mas a outra metade relutava, me dizia que não poderia trair a confiança do meu amigo! Que ler aquela carta seria uma infâmia, algo abominável, estaria desconsiderando uma velha e grande amizade.
Aquela divergência produziu em mim um calor que assomou alturas e me vi diante de um dilema:
- Ler ou não ler a carta!
Por alguns instantes quase a abri, a curiosidade era por demais, e por outro lado me reservava, me continha, lembrava do amigo, estaria traindo-o, aquilo tudo produziu em mim as mais absurdas conjecturas sobre o teor da referida carta, seria uma amante se despedindo, seria um amor secreto, destes que se leva pelo lado obscuro da vida?
Por fim, firmado o juízo, venceu a metade que dizia para que não lesse, que não abusasse daquela antiga amizade, constrangido, um tanto desnorteado, guardei inviolada aquela carta.
Passado alguns meses eis que me visitou aquele mesmo amigo que presenteara com os livros, e insistia em ver onde os tinha guardado, em que local na minha biblioteca os tinha colocado, se os tinha lidos, tecia comentário sobre este e sobre aquele livro, quis vê-los, remexeu daqui, remexeu dali, por fim se maravilhou como que tivesse encontrado uma joia rara, ele se deparou com o livro de Homero e o agarrou, agoniado, contristado, suava, falava coisas sem nexo a respeito do livro, trêmulo, não ousava abrir o livro que continha o falso marcador de páginas, balançava o livro pra cá e pra lá, das vezes fazia dele um abanador, notando toda aquela agonia e aquele desespero, pressentindo que ele desejava mais do que nunca ficar por uns instantes sozinho com o livro, com a desculpa esfarrapada de beber um copo de água o deixei momentaneamente, e de soslaio fiquei a observar quando ele matreiramente retirou de dentro do livro a enigmática carta e a colocou rapidamente em seu bolso, aliviado, foi como que se tivesse tirado um peso enorme de sua cabeça, rapidamente devolveu o livro à biblioteca e prazerosamente aceitou um copo de água.
Assim que ele se despediu, não me arrependi da decisão tomada, me senti confortável, leve, livre dos açoites de não ter me amesquinhado, de não ter traído o meu grande amigo, mesmo sabendo que a minha curiosidade implorava para que eu lesse o conteúdo daquela carta.
Das vezes me pego a imaginar, que deveria ser algo muito especial, mas muito especial mesmo para que ele viesse até minha casa, procurasse pelo livro e furtasse a referida carta, nem sei se ele furtou, na verdade ele a recuperou, tomou para si o que era de fato e de direito seu, carregou consigo pra todo o sempre aquele segredo que esteve nas minhas mãos e que a muito custo e contragosto me recusei a descobrir o que era.