HOJE É QUARTA-FEIRA, MEU BEM!

 ...De Cinzas...
 ... - lembrete inexorável, pós lauto banquete de folguedos mil, rematados na Terça-Gorda.
 É!... E agora? 
 ...Agora, é desfolgar, "desrelaxar", tocar a vida.
 (...)
 Não sei por qual motivo, na Terça-Gorda do longínquo ano de nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil novecentos e cinquenta e quatro, eu, que sempre me meto a escrever coisas da minha vida, resolvi cair na folia: o marmanjão de quinze anos, galalau de um metro e setenta e oito, resolveu esbaldar-se num baile infantil, pondo-se a pular sozinho no meio de criançada miúda...      
 ...Depois, a sensação do ridículo.
 (...)
 Disse desconhecê-lo? A consciência me pesa, e confesso: eu sabia, sim, o motivo do repentino interesse carnavalesco: ao melhor folião seria oferecido um prêmio - qual, já nem lembro. 
 ...Por ele, esfalfei-me; por ele, fiquei rouco; por ele, os sapatos castigaram pés não acostumados à insólita proeza, a camisa encharcou-se de suor... Sem dúvida, por tanto esforço eu seria o ganhador.
 (...)
 Seria. Mas não fui.
 ...Depois, a sensação da injustiça. ("- Cegos! Vocês fingiram não me ver! Mas eu - EU, ESTÃO OUVINDO? - fui o melhor folião!"). Não gritei; só pensei. Fiquei fulo!
 (...) 
 Meu irmão, um ano e meio mais velho que eu, sempre conseguiu "pegar carona" com nossa tia para ir aos bailes noturnos do carnaval. A esses bailes só podiam entrar menores com quinze anos (ou mais) se acompanhados por responsáveis. Puxa-saco declarado da nossa tia, ela sempre o levou - quando ainda tinha treze anos, quando ainda tinha quatorze anos, quinze anos -, pois não havia porteiro com coragem bastante para contestá-la: aos treze, ele tinha quinze, aos quatorze, continuava com quinze, aos quinze, tinha quinze, e estava acabado. Conhecida como mulher zangada, bastava arregalar os olhos para o contestador, e as portas se abriam.
 No ano de 1954 o puxa-saco estava próximo a completar dezessete; eu estava com quinze; todavia, ele continuava como carona, e eu, não.
 ...Talvez isto haja contribuído para o repentino surto "foliônico" por mim sofrido: chegaria em casa premiado, e todos se lembrariam que eu havia completado quinze anos - portanto, com "direito" a entrar nos bailes adultos.
 Na verdade, não era meu propósito brincar no baile infantil. Havia esperança de ir ao baile da noite...
 ...Mas tanto olhei para o trombonista, tanto olhei, que me lembrei de o que acontecera na noite anterior, justamente entre o músico e titia:
 Estava ela posta em sossego, sentada à mesa próxima ao palco, acompanhada da filha e do puxa-saco, quando começou a ficar incomodada com algo. Remexia-se, olhava para os lados, para o alto... Daí a pouco, novamente, remexia-se, passava a mão, de leve, nos bastos cabelos brancos presos em irrepreensível coque... E nada.
 Aquilo continuou a incomodá-la. Continuou, até que, ao passar as mãos mais fortemente nos cabelos sentiu-os molhados. Olhou para cima: do teto, não era. Virou o corpo para trás: o trombonista, tão magro que a cada sopro poderia, de repente, virar do avesso, entrar pelo bocal e sair pela campana, punha toda a força dos seus pulmões para preencher as voltas e reviravoltas do trombone-de-vara; e o instrumento, "expondo" o resultado de tanto esforço, babava saliva nos cabelos da tia!...
 Ela não fez cerimônia; enfezada, encarou o pobre homem e berrou: - Vira essa bosta de trombone pra lá, seu merda! 
  (...)
  Como já havia contado anteriormente: fiquei fulo, por não ter ganhado o prêmio.
  Saí dalí "macho dentro das calças" (como se costumava dizer, naquela época), soltando fogo pelas narinas. Que o baile noturno fosse também às favas!
 Duzentos metros adiante fui chamado por alguém que se dirigiu a mim dizendo: - Vi um caderno seu, com meu sobrinho. Gostei da sua letra. Você quer trabalhar comigo?
 Era o Tabelião e Escrivão, Oficial do Cartório do 2o Ofício.  
 Na Quarta-feira de Cinzas, ao meio-dia, eu comecei no meu primeiro emprego. Aos quinze anos.
 Aos dezoito, fui emancipado, para exercer as funções de Escrevente de Justiça. Pouco mais à frente, fui nomeado pelo Governador do Estado: fui nomeado Substituto de Tabelião, Escrivão e Oficial do Registro de Imóveis.
  (...)
  Não tivesse ido ao baile infantil, talvez meu futuro fosse outro. Naquela Terça-Gorda perdi um prêmio insignificante e ganhei um maior, infinitamente maior. 
 ...Àquele homem que me convidou devo muito do que sou, hoje.
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 Quantos se levantaram, na manhã desta Quarta-Feira de Cinzas, chamados pela esposa: - Hoje é quarta-feira, meu bem! Levante!   
  (...) 
  Trabalhem, meus amigos, trabalhem... 
  ...para que, no futuro, as Quartas-Feiras de Cinzas sejam, também, de Céu Azul, Areia Branca e Mar Verdinho. 
 Graças a Deus, eu estou nestas.

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 (Em tempo: não consegui mesmo, a carona para o baile dos adultos.)

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Fev., 13, 2013