Ponteiros que curam

Quando menina, ela observava as flores. No fundo do quintal de sua casa tinha um pequeno jardim, que com seu esforço infantil, zelava diariamente. Eram flores de várias espécies que faziam parte daquele seu patrimônio. Tinha na consciência que cada planta era sua e gostava da sensação de posse, apesar de saber que em verdade nada possuía, as flores eram apenas sua propriedade até que o tempo as tirasse. Mas o tempo não era mau. Um dia ouvira a mãe falando sobre o tempo ser o melhor remédio e não resistiu sem perguntar:

"O tempo cura as pessoas?"

E a mãe respondera, na ânsia de sua pressa, que:

"Certas coisas somente o tempo pode curar."

E a menina novamente perguntou:

"E então ele é um remédio, igual a esses que a gente toma pra curar resfriado e gripe?"

A mãe não estava com tempo e nem paciência para saciar aquela sede de resposta da menina, e simplesmente afirmou. A partir de então a menina passou a acreditar que o tempo era um remédio, e com sua propriedade medicinal não poderia prejudica – la, tirando suas flores, deixando –a solitária naquele mundo incompreensível.

A pequena tinha em mente a coisa que mais lhe chamava a atenção no seu jardim, que não era a variedade de espécies de flores. Ela as amava como amava todas as plantas, como amava sua família. Mas uma delas era especial. A garotinha nem sequer sabia o nome da plantinha. Sabia que não era uma flor. Não possuía a beleza resplandecente da rosa, nem o perfume do cravo, tampouco a elegância do lírio, mas era tão bela, tinha algo inexplicável e encantador: parecia uma arvorezinha, com suas minúsculas folhinhas e galhinhos.

A menina era solitária. Tinha um pai e uma mãe que a amavam, mas seus olhinhos brilhavam na terna expectativa de ter uma companhia, um irmão ou uma irmã, alguém de sua idade, com quem pudesse brincar e compartilhar conversas que seus pais eram incapazes de compreender. A idade parecia emburrecer as pessoas, como que não sabiam responder de forma clara a uma simples pergunta? Se o tempo era um remédio, desses que se compra em farmácia? A mãe até falou do tempo e do relógio. Que o relógio era um objeto que marcava as horas, mas como aqueles ponteiros se movimentando, cada um em seu ritmo, poderiam curar alguém? Queria explicações mais convincentes.

Seus pais moravam em um sítio, naquelas casinhas humildes e cheias de graça, onde se contam as mais belas histórias ao redor do fogão à lenha. As companhias que a menina tinha, eram as plantas e os animais. E adorava mesmo suas flores, que cuidava como a própria vida. Ficava horas só olhando para as suas flores e mais horas ainda se deliciando com o prazer de contemplar a sua arvorezinha. Eram tão frágeis seus galhinhos finos de um verde tão vívido, parecia que a qualquer momento iriam desmanchar – se com um áspero esbarrão. É que pediam carinho. A fragilidade dos galhos pedia carinho, o mesmo carinho que as mãos e bracinhos de um moreno pálido da menina pediam diariamente. Mas a garotinha buscava o colo da mãe. As histórias do pai e as viagens que a sua imaginação lhe proporcionava. Ela era feliz. Feliz em seu mundo interior. No interior de sua alma infantil, que não conhecia luz elétrica, nem televisão e que abrigava uma felicidade inexplicável, contida no interior de cada ser que a rodeava, de cada uma de suas amadas plantinhas.

Um dia a mãe dissera que as plantas eram vivas e que as árvores sentiam dor quando eram cortadas. A partir de então, a menina não arrancava as flores. Se arrancasse sentia – se desprezível como se estivesse roubando um recém – nascido. Frutos eram feitos para serem colhidos, mas as flores não. Eram belas e frágeis demais para isso. Arrancar uma flor de seu caule era um crime bárbaro, uma ofensa, era como se a roubasse de sua mãe e colocassem em uma mesa da sala como enfeite. A beleza seria triste, desprendida de suas origens ela choraria.

Mas nem toda a beleza é frágil. A menina descobriu isso quando viajou e não levou a sua querida arvorezinha. Não podia levá – la e nem tinha necessidade de levá – la. Ela estava feliz ali e arranca – lá feriria o seu próprio ego. Na verdade precisava da arvorezinha. Fazer mal a pobrezinha era praticamente um suicídio. Leva – la seria um suicídio.

Passaram – se os dias e ao retornar, a menina dos olhos castanhos brilhantes, pode ver sua arvorezinha ali no mesmo local. O medo a atormentara em toda a viagem. Era um medo que sua arvorezinha, sua amiga e companheira, desaparecesse, morresse de saudade, ou de morte súbita. Seria possível um suicídio desesperado de sua fragilidade? Mas o que importava é que ela estava ali, ainda a longa distância a menina avistava sua amiga e parecia diferente. Uma diferença que notou com angústia ao aproximar – se: Seus galhinhos estavam mutilados. Uma profunda dor de culpa assombrou a menina. Pobre ser que ela abandonara para desfrutar de uma vaidade sua. Não é assim que se trata um amigo. Os amigos são cultivados sempre. Não se deixa ou se esquece um amigo pra viajar. E dentro de seu íntimo, a menina soluçava, pois durante instantes esquecera sua amiga. Brincara com colegas distantes e esquecera a verdadeira amizade. Era isso: a sua arvorezinha não tinha sido regada, esse era o motivo pelo qual não suportara. Quando não regamos, não cultivamos nossas arvorezinhas murcham, perdem seus galhos e sua beleza, sua vida. Não há mais retorno. É inútil tentar recoloca- los no lugar novamente e fazer curarem – se as cicatrizes.

E a garotinha aproximava – se de sua amiga com desespero de quem espera o momento certo para desculpar – se de erro cometido. A menina estendeu a mão para tocar os galhos arrancados. Ao tocar nos galhos que estavam no chão, desprendidos do restante de sua amiga, que já não parecia mais tão triste quanto aparentara à distância, a menina pode perceber que estavam rígidos e com vida. Tinham raízes. Descobriu que não eram tão frágeis quanto pareciam. Que a fragilidade de sua arvorezinha era seu dom. Ela se multiplicava. Seus pedaços geravam novas arvorezinhas. Sua beleza não era frágil. E mesmo vendo que a sua árvore amiga não estava morta, mas gerando novas vidas, a menina estava triste. Precisara abandonar sua amiga pra conhecer o seu dom, pra entende – la melhor. Estava com uma dor sem sentido agora, uma dor de mãe e pai que não participam da infância dos filhos. Não participara do nascimento dos filhos de sua amiga. Continuava sendo uma amiga incompleta, mas tinha em mente que poderia reverter esta situação. O tempo poderia cura – la.

Seguiu até a sala, correndo em desesperados passos, a fim de atravessar até a cozinha, que ficava mais ao fundo da casa, para pedir a mãe um pouco de tempo, o remédio que ela precisava naquele instante. Mas imaginou que a mãe estaria ocupada e parou na sala mesmo, diante do relógio na parede. Mirava – o com esperanças de que algo extraordinário acontecesse, e a memória dos instantes que não vivera ao lado da amiga, se apagasse. Mas como poderia desejar apagar da mente algo que não viveu? Era estranho, mas era exatamente isso que desejava. E a garotinha ficou por horas olhando para os movimentos dos ponteiros. Até que a mãe apareceu na sala.

"Nossa! O que faz aí parada? Achei que estaria com as suas flores? Você gosta tanto delas!"

A menina pensou em dizer muitas coisas, tudo o que sentia, mas preferiu resumir seus sentimentos. A mãe não entenderia. E somente disse:

“Eu só estava esperando o tempo passar.”

A mãe entendeu. Mãe sempre entende, mesmo com suas mil funções, as mães entendem seus filhos. E segurou afetuosamente a mão da menina, conduzindo – a até o quintal. Levou – a até as flores e contou toda a história sobre o dom da arvorezinha. As duas ficaram ali ao lado das flores, conversando por horas. E a menina não viu o tempo passar.