A culpa é do trem
Se tem uma coisa que eu não gosto é chegar atrasado a algum compromisso. A ideia de deixar alguém esperando me aterroriza, pois sei que, muitas vezes, essa pessoa poderia estar usando esse tempo para fazer inúmeras outras coisas mais importantes que estar parada em algum lugar esperando por mim, como, por exemplo, pagar uma conta no banco, plantar uma árvore, assistir "Malhação", ou pesquisar sobre a incedência do vírus ebola na população da Tanzânia.
Talvez eu não tivesse esse problema caso nascesse no Brasil Colonial. Naquela época, o tempo só era controlado pelos sinos das igrejas, que badalavam às 6h da manhã, ao meio-dia, às 6h da tarde e à meia-noite. Os atrasos não eram, desta forma, tão notáveis e importantes. Se, por exemplo, o padre responsável pela igreja de determinada cidade dormisse um pouquinho além da conta (até porque, ele também era filho de Deus) e só acordasse a tempo de tocar o sino às 6h15min, nenhum homem ou mulher daquela cidade sentiria falta dos 15 minutos e todos assumiriam que eram 6h da manhã. O que interessava era o ritmo daquela cidade.
Então, os homens resolveram começar a visitar as outras cidades. Problema nenhum: saíam de casa às 6h da manhã (ou 6h15min, 6h20min; dependia do sono que o padre teve naquela noite), montavam em seus cavalos e iam, sem pressa. Chegavam na cidade de destino a tempo de ouvir as badaladas das 6h da tarde (que, na verdade, foram dadas às 6h10min, pois o padre local se atrasou tomando chá na casa de um paroquiano).
Só que, aí, os homens decidiram que queriam chegar mais cedo na outra cidade. Não faço ideia do motivo, até porque, ainda não existia "Malhação" para eles assistirem. Se bem que, naquela época, deviam ser inéditos os filmes que passavam na "Sessão da Tarde". Ou, de repente, seria uma maneira de livrarem-se dos doces azedos que as esposas mandavam eles levarem nas bolsas:
- Leva sim, meu marido! A viagem é longa e ainda não inventaram o McDonald's.
- Mas, meu bem...
- Sem "mas", nem "meio mas"! Ou você não gosta dos meus bolinhos?
E eles calavam-se e levavam para não correr o risco de antecipar o apocalipse.
Mas, enfim, voltando ao assunto principal, os homens viram, também, a necessidade de facilitar o transporte de mercadorias entre as cidade. É nesse contexto que aparecem as ferrovias. E, com elas, um problema: foi necessário estabelecer horários para que o trem saísse de cada cidade. Surgiram, assim, os primeiros atrasos e atrasados.
A cobrança para que o trem saísse no horário combinado foi ficando cada vez maior, assim como a insatisfação do homem com o tempo de viagem entre duas cidades.
A necessidade de "economizar tempo" tornou-se uma ideologia humana de uma forma tão forte que eu acredito que tenha surgido uma nova classificação do homem: o "homo tempus dependis", ou o homem que depende do tempo.
Você tem todo o direito de estar revoltado com o meu latim (ou qualquer que seja essa língua estranha que eu usei/criei), mas não pode negar que tenho razão; caso tente negar, como você explica o fato de uma mensagem levar, hoje, 20 segundos para chegar do Brasil ao Japão, enquanto, no tempo do surgimento dos trens, levava dias para chegar do Rio de Janeiro a Salvador?
Porém, em relação ao "homo tempus dependis", algo merece destaque. Por algum motivo ainda não descoberto pela ciência, alguns seres humanos preservam, ainda hoje, características de seus antecessores da época do Brasil Colonial, não sendo, em boa parte das vezes, tão apegados ao tempo. Estes são os seres humanos do sexo feminino. Também conhecidos como mulheres.
Acredito que essa questão ainda não esclarecida pela ciência seja uma das explicações viáveis para a vocação que as mulheres têm para atrasos. A outra explicação é a existência de uma sociedade secreta feminina que determinou em suas regras que toda mulher deve se atrasar pelo menos 15 minutos para todo compromisso, com o único objetivo de irritar seu marido, namorado, irmão, primo, amigo, peguete, animal de estimação, ou qualquer outro acompanhante do sexo masculino.
E o pior são as desculpas que elas usam para justificar o atraso.
- Não, amor! O brinco dourado não combina com essa blusa de cetim. Mas pode ficar tranquilo que eu já vou achar o prateado. Ele só pode estar em um desses 32 porta-jóias.
Quer outro exemplo? Semana passada, minha professora de História do Brasil III, na faculdade, chegou meia hora atrasada e eu fui falar com ela:
- Poxa, professora, a senhora está meia hora atrasada! Quase que eu fui embora!
- Ah... Não tive culpa. - respondeu ela - A culpa é do trem!
- Mas a senhora não vem de carro? - perguntou outro aluno.
- Venho, mas o conceito de atraso só começou a se propagar no Brasil por conta das ferrovias.
E ela começou a falar de como o trem influenciou a visão humana de temporalidade.
(Este texto não possui nenhum compromisso com a verdade, sendo meramente fictício. Exceto na parte que diz que as mulheres têm vocação para o atraso.)