Ele vai, ela vem
Ela se aconchega delicadamente a ele e enquanto ele a envolve, o sol desponta delicadamente no horizonte. Ele estremece, enquanto sente o tremor violento do corpo dela. Em um minuto, a ave, um belo falcão levanta vôo e ele se senta aturdido. Olha os pés e nota que estão lanhados de sangue. Não lembra o que foi, mas certamente na noite anterior, deve ter brigado e saiu ferido. Levanta, olha pra fora pela janela da cabana e aproxima-se da chama, pra esquentar as mãos. Sabe que vai nevar e espera que o falcão ache um abrigo.
Prepara uma caneca de café e se envolve em grossos mantos, preparado-se pra ir à aldeia. Sabe que tem pouco tempo, então toma o cajado pra ajudá-lo a caminhar, já que a perna ferida dói. Ao sair na porta da cabana, um lobo o espreita. Ele encara o animal que recua assustado. Vê nos olhos dele o reconhecimento e avança sem medo.
…
Muitas horas depois, enquanto o tempo escurece e flocos de neve começam a cair, ele retorna cansado. Sabe que logo anoitecerá e toma um caldo quente, evitando pensar no que o espera. A busca na aldeia não deu em nada.
A noite vai caindo como um manto que aperta o coração dele, e ele sabe que o tempo não espera ninguém, é imutável... ele ouve o grito do falcão e assoma à porta, enquanto a neve rodopia em frente à cabana. O animal chega e entra rápido, sacudindo as penas. Vai pra cama e ele vê seu pequeno corpo ser violentamente sacudido, enquanto ela emerge como que envolta em véus. Está nua e ele aproxima-se. Tocam as mãos, ele a abraça e abruptamente se afasta. Corre para a porta e ela vê o lobo sair em disparada, uivando, em direção à floresta. Veste-se e reaviva o fogo pra se aquecer. Toma a sopa que ele deixou pronta pra ela e pega a folha em que ele escreve do seu amor à cada noite.
Lê, chora e pega o lápis com o qual reponderá falando do seu amor a ele. Assim tem sido por cinco anos e eles não sabem ainda quem poderá desfazer esse malefício. A noite é dela e o dia é dele. Os outros horários são mistério, perdidos pra consciência de cada um deles, horas mortas que afogam os seus sonhos e projetos e das quais eles nada sabem, a não ser pelos olhos do outro.
Claro que isso é uma historinha, objeto de filme conhecido, mas também traduz desencontros nos relacionamentos, que sem chegarem a esses extremos da lenda, falam do dia a dia em que as pessoas mesmo se amando, falam linguagem diferente, que geram desencontros tremendos.
Em qualquer relação, a linguagem é essencial e é bem aí que muita gente derrapa. E os encontros se tornam desencontros em que dois estranhos ficam sem ter o que dizer.