O Candidato a Santo

Perguntei a um rapaz pálido onde era o Departamento de Recursos Santificados. Ele me apontou um corredor e disse que era a terceira porta. Era uma porta bem comum, eu esperava mais, pela importância do serviço. Bati e ouvi alguém dizer que eu podia entrar.

Atrás de uma mesa de tampo cor de goiaba havia um outro rapaz pálido (o pessoal por aqui deve ser vegetariano, pensei). Ele estava lendo um gibi do Ferdinando.

- Meu nome é Gabriel. (Apertou a minha mão). Nós costumamos manter as aparências o mais próximo possível do que os clientes estão acostumados, por isso a porta deve ter lhe parecido bem comum. E, realmente somos vegetarianos.

- Mas, eu não falei nada!

- Nós não estamos nos comunicando por meio oral...

- Meu nome é Lucas, disse eu, com um sorriso interno. (Nome de santo deve dar pontos extras na seleção).

O rapaz sorriu, divertido.

- Venho me candidatar a uma vaga de santo.

- OK, disse ele – e estendeu-me um formulário. Além de preencher seus dados pessoais, em três vias, tenho que lhe fazer algumas perguntas. A nossa pesquisa é quali-quantitativa. No formulário serão colocadas também informações quantitativas, que irão servir de base para uma espécie de contabilidade de débitos e créditos. Nos créditos colocamos todas as informações benéficas e positivas do senhor para com a vida, seja de semelhantes ou não. E nos débitos colocamos suas ações negativas e maléficas para com a vida, também chamadas comumente de pecados. Todas as ações, no entanto, receberão um peso qualitativo. Curar uma criança, por exemplo, não é garantia suficiente de pontos positivos. Depende das razões da iniciativa e no que se transformou essa criança como adulto.

- Fumar, então, seria um pecado, já que atenta contra a vida?

- Sem dúvida, principalmente para quem nasceu após a constatação científica de que o cigarro está associado a diversas doenças. Para os nascidos em anos anteriores a 1950, que sofreram a influência do cinema na juventude, onde todos os heróis eram fumantes inveterados, estes têm desconto de pontos na coluna dos pecados, pois estes não sabiam o que estavam fazendo.

- Não tenho uma religião específica para colocar aqui. Sempre pensei que todas as religiões eram boas para as pessoas e não me decidi por nenhuma. Posso responder... “Todas”?

- Claro! Essa é a resposta que o Chefão também dá! Afinal, ele permitiu a criação de todas elas...

- Eu passei a minha vida toda como professor universitário. Minhas boas ações seriam, sobretudo, na área educacional. No entanto, nesta área nunca sabemos se o profissional que está sendo formado será, no futuro, benéfico ou maléfico para a vida. Qual o critério que vocês utilizam para julgar se eu cometi ou não pecado, neste caso?

- Bem, não só consideramos o resultado final – o profissional – mas o quanto existe de influência positiva no ensinamento que ele recebeu do candidato.

- Para garantir a vaga é preciso ser um ser humano perfeito?

- Meu caro, a pergunta é contraditória. Se for um ser humano, logo não é perfeito. Se fosse perfeito já seria santo. Muitas religiões afirmam que a vida terrena é apenas um momento de aperfeiçoamento. O que fazemos aqui é justamente avaliar o progresso terreno do candidato. Uma contabilidade favorável pode colocar o candidato em boa posição.

- Há que se cumprir todos os mandamentos? Que eu me lembre só cumpri à risca “guardar os domingos e festas”... Sempre achei impossível, por exemplo, “não cobiçar a mulher do próximo”. Esse só é facilitado quando o próximo está próximo. A cobiça é instintiva. Repare quando a comida vem chegando à mesa. Por mais que a conversa esteja boa, todos olham para a bandeja do garçom! Se fosse “não prevaricar com a mulher do próximo” eu teria pontos garantidos. Outra dúvida: “não matarás” inclui comer frango ou só vale para vida humana?

- Meu amigo, é claro que os mandamentos utilizam uma linguagem simbólica. Nós aqui somos bastante flexíveis na interpretação desses preceitos. Estamos pensando em uma redação mais moderna, atualizada. Mas, sim, os dez mandamentos são considerados.

(Pensei: tomei o nome Dele em vão várias vezes; matei moscas, baratas e até um rato; às vezes não O amei sobre todas as coisas – Ele me deixava furioso de vez em quando, até o Papa concordou comigo –; de vez em quando não honrei pai e mãe; roubei um gibi do Ferdinando quando era guri; pequei convictamente contra a castidade; não levantei falso testemunho, mas preguei as minhas mentirinhas, apostólicas, a bem da verdade e finalmente cobicei muitas coisas alheias)...

- Hummm...Uma pergunta: tem vaga de candidato para índio ou golfinho?